Gilles Lellouche: uma parábola social em tom de "David e Golias" |
Recuperando uma tradição narrativa de algum cinema europeu, o filme francês Golias encena um conflito social motivado pelo uso de pesticidas letais, com um excelente elenco liderado por Gilles Lellouche — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 novembro).
A força simbólica de uma tradição cinematográfica não resulta da nostalgia com que a evocamos, muito menos de uma qualquer beatice mediática para satisfazer a moda do “culturalmente correcto”. Quando existe uma memória ágil de tal dinâmica, podemos deparar com belas surpresas como Golias, produção francesa com realização de Frédéric Tellier disponível salas portuguesas.
A tradição que faz sentido evocar — o “thriller” europeu com histórias e personagens que reflectem clivagens sociais e políticas do presente — sempre marcou algum cinema francês, em particular através de autores clássicos como Costa-Gavras (Estado de Sítio, 1972) ou, mais recentemente, Laurent Cantet (A Turma, 2008) e Stéphane Brizé (A Lei do Mercado, 2015). Na produção de Itália, em particular ao longo das décadas de 1960/70, podemos encontrar alguns título igualmente importantes: recordo a trajectória modelar de Dino Risi (1916-2008) e o exemplo emblemático de Em Nome do Povo Italiano (1971), centrado numa investigação do comportamento de um poderoso industrial com perversas relações com o meio político.
O “Golias” citado no título do filme de Tellier é uma empresa de produtos químicos para a agricultura, Phytosanis. Quem desafia os seus poderes é um “David” constituído por uma comunidade de pessoas directa ou indirectamente afectadas pela “tetrazina”, um pesticida cancerígeno.
Os nomes da empresa e o pesticida são fictícios, mas não pretendem ser neutros em relação a acontecimentos recentes na sociedade francesa, quer na esfera da justiça, quer na discussão pública sobre os prós e contras dos pesticidas. Num texto de abertura, o filme esclarece isso mesmo, já que, depois de assinalar os seus elementos fictícios, se escreve: “Qualquer semelhança com acontecimentos reais, pessoas mortas ou vivas não é fortuita, nem involuntária.”
Entenda-se: não é a gravidade dos assuntos evocados que garante a qualidade do filme — já é tempo de percebermos que a importância, ou mesmo a urgência, dos “temas” tratados serve muitas vezes de máscara social de algum cinema apenas medíocre. Invulgar no filme de Tellier é, justamente, essa capacidade (tradicional) de tratar o assunto, não como se fosse um “inventário” jornalístico ou um “sermão” político, mas como uma verdadeira narrativa cinematográfica, com gente viva e emoções genuínas.
Três personagens definem os pólos dominantes do drama: Patrick, o advogado que, superando algum desencanto do seu próprio passado, decide defender as vítimas; France, cujo marido morreu devido aos efeitos da “tetrazina”; e Mathias, líder do “lobby” da Phytosanis, combinando uma sinistra habilidade negocial com o cinismo face ao sofrimento dos outros. Dito de outro modo: este é também um filme de grandes interpretações, sobretudo nessa personagens — Gilles Lellouche, Emmanuelle Bercot e Pierre Niney, respectivamente. Sem esquecer que, no papel de um cientista que conhece os abusos ligados à fabricação de pesticidas, surge Jacques Perrin (1941-2022) naquele que seria o deu derradeiro trabalho em cinema.