sábado, novembro 26, 2022

Na companhia de Freud

Reflexão (auto-retrato), 1985

O LEFFEST celebrou o cinema, acolhendo também outras imagens, por exemplo de Freud, o pintor: com ele, reencontramos a verdade do realismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 novembro).

Lucian Freud
Freud desceu à cidade. Eis aquele que poderia ser um título sugestivo para acolher as imagens de Lucian Freud (1922-2011) que a sua filha, Bella Freud, decidiu trazer à 16ª edição do Lisbon & Sintra Film Festival. E insisto na palavra “imagens”: não apenas os quadros, mas memórias vivas do próprio pintor, num filme realizado por Jake Auerbach para a BBC — da série “Omnibus”, emitido a 20 de maio de 1988 —, documento precioso em que vemos e escutamos o próprio Freud num raro testemunho sobre o seu trabalho.
Freud sempre resistiu às formas banais (mais “mediáticas”, como agora é moda dizer-se) de exposição pública. O facto, aliás, é sublinhado logo na abertura do programa da BBC, dando conta do contexto em que o pintor aceitou ser filmado e falar um pouco do seu trabalho: foi em 1988, precisamente, por ocasião da retrospectiva que teve lugar na Hayward Gallery, em Londres.
Antes mesmo de Auerbach começar a colocar as suas perguntas, somos confrontados com uma longa, lenta e ritmada frase de Freud: a sua fala vai “colando” conjuntos precisos de palavras, dir-se-ia como quem escolhe as pinceladas certas para criar uma determinada figura ou volume. Embora consciente da dificuldade de tradução, eis uma possível versão: “Muitas pessoas mostram-se espantadas pelo facto de alguém sacrificar a possibilidade de algum conforto e daquilo que consideram uma vida agradável, vivendo antes uma vida de incerteza, talvez mesmo de solidão, dedicada àquilo que encaram como uma actividade incompreensível, com resultados que muito provavelmente nem sequer alterarão a sua situação em termos económicos — a ideia de tudo isso é, para muitas pessoas, surpreendente, sobretudo para quem não ande a tentar fazer algo do mesmo género.”
No fim destas palavras, propondo um metódico jogo de espelhos, Auerbach dá a ver um dos auto-retratos do pintor, datado de 1985. Aliás, como mais à frente o próprio Freud explicará, a noção de “auto-retrato” é, para ele, muito discutível: aquele que faz o seu retrato não se pode ver a si próprio, a não ser através de algum tipo de reflexão — o título exacto do quadro é mesmo Reflexão (auto-retrato). A ambiguidade da classificação ajuda-nos a compreender a obsessão realista da sua obra — a esse propósito, o filme cita o crítico Robert Hughes (autor de um programa clássico da BBC sobre a arte moderna, The Shock of the New, emitido em 1980), considerando que, naquele momento, Freud era “o maior pintor realista vivo”. As relações que estabeleceu com os seus modelos (não profissionais) são, nesse aspecto, esclarecedoras, já que Freud considerava mesmo que a noção corrente de “posar” é algo que, a todo o custo, procurava evitar: “Quero que aqueles que posam para mim sejam eles próprios, não quero utilizá-los para satisfazer uma ideia minha, como se se tratasse de escolher uma figura para ilustrar essa ideia. O que quero é pintar cada um deles — mesmo um gémeo igual não serviria como substituto.”
Embora este não seja um acontecimento “central” na programação do LEFFEST (afinal de contas, o festival propõe os mais recentes filmes de Cronenberg, Sokurov, Skolimowski, etc.), nele podemos reencontrar um tema hoje em dia desvalorizado pela avalanche de imagens quotidianas que consumimos sem qualquer distanciamento ou pensamento. A saber: a paixão pelo realismo e pela sua verdade — na certeza de que não há “um” realismo, mas vários realismos, cada um ligado a determinado contexto histórico e criativo.
Essa verdade tem tanto de físico como de imaterial e imponderável. Uma vez, num dos seus apontamentos, Freud escreveu: “A aura que emana de uma pessoa ou de um objecto pertence-lhes tanto como a sua carne.” A frase é citada no livro Breakfast with Lucian (Vintage Books, Londres, 2015), escrito pelo jornalista Geordie Greig a partir de conversas ao pequeno almoço durante os últimos dez anos de vida do pintor.
Inevitavelmente, Greig confrontou o amigo Lucian com a possibilidade de ter sido influenciado pelo avô, Sigmund Freud (1856-1939), fundador da psicanálise. “Nunca penso dessa maneira”, respondeu-lhe o pintor que, como Greig sublinha, considerava que “demasiada análise era paralisante”. Por isso mesmo, fiquemos por aqui, celebrando a presença de Freud entre nós, na certeza de que o neto tinha uma memória muito terna do avô: “Gostava muito da sua companhia. Nunca era aborrecido. Contava-me anedotas.”