terça-feira, setembro 06, 2022

John Boorman:
a natureza não é natural

Fim de Semana Alucinante: um clássico que está a fazer 50 anos

Qualquer visão da natureza envolve uma dimensão cultural. Meio século depois, Deliverance é um filme que nos ajuda a pensar essa ambivalência — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 agosto).

O paraíso tem bom marketing. As tragédias climatéricas passaram a ser uma assustadora alínea dos noticiários de todos os dias, mas há discursos publicitários que nos garantem que, com o produto certo, seremos abençoados pelos elementos da natureza. Observe-se a proliferação de anúncios que encenam o nosso futuro automóvel, soberbo e solitário, em infinitas paisagens bíblicas, sem trânsito nem poluição, conduzindo-nos para um horizonte redentor.
É desconcertante, aliás, que o poder cultural da publicidade seja um assunto quase sempre descartado pelas entidades políticas ou com responsabilidades mediáticas. Não que eu proponha qualquer demonização de uma arte recheada de criadores de génio. Ainda assim, talvez fosse pedagogicamente útil observar o modo como a publicidade pode determinar muitas formas de percepção do mundo e respectivos valores culturais — desde o que seja a felicidade familiar, por vezes dependente apenas do perfume de um novo ambientador, até à conceptualização das férias como apoteose de uma noção pueril de liberdade.
Em boa verdade, longe de qualquer abstração natural e naturalista, a natureza é o mais cultural dos conceitos: as nossas relações com os seus elementos integram a complexa dinâmica de valores contrastados, com frequência contraditórios, de que se faz a vida das sociedades. Por vezes, como bem sabemos, através do humor mais triste que possamos imaginar. Lembremos apenas o comentário de Donald Trump, nos últimos dias de 2019, reagindo às temperaturas negativas na costa leste dos EUA, aconselhando os americanos a agasalharem-se e propondo uma solução caricata para enfrentar o frio: “Talvez possamos usar um pouco do velho aquecimento global…”
Vem a propósito recordar que a produção industrial de Hollywood está pontuada por muitos filmes que lidam, justamente, com essa ambivalência material e filosófica: a natureza como entidade enredada nas mais variadas idealizações morais e políticas, a par da sua metódica decomposição ideológica. Há sinais dispersos de tudo isso desde uma obra-prima do mudo como Greed/Aves de Rapina (1924), de Erich von Stroheim, em que o pesadelo do deserto se confunde com o delírio impessoal do dinheiro, até ao novíssimo filme de Jordan Peele, Nope (estreado há poucos dias), reescrevendo a mitologia “natural” do mais americano dos géneros cinematográficos, isto é, o “western”. Sem esquecer que a evolução temática e crítica do “western”, de John Ford a Sam Peckinpah, corresponde também a um capítulo emblemático de transfiguração do conceito de natureza no interior do imaginário made in USA.
Há meio século, no verão de 1972, surgia Deliverance (entre nós: Fim de Semana Alucinante), um filme prodigioso sobre a ambivalência da natureza. Curiosamente, trata-se de um título contemporâneo de várias obras apostadas em discutir a iconografia e as narrativas dos modelos clássicos do “western” — exemplo do mesmo ano: Jeremiah Johnson (lançado em Portugal como As Brancas Montanhas da Morte), de Sydney Pollack, com Robert Redford.
Deliverance é uma fábula assombrada sobre uma América interior, à partida entendida como um paraíso parado no tempo, à espera de ser descoberto. Seguimos a odisseia de quatro amigos, cidadãos “médios”, interpretados por Jon Voight, Burt Reynolds, Ned Beatty e Ronny Cox: o seu fim de semana de canoa, na região de Appalachia, vai evoluir da ingenuidade utópica para uma crueza com tanto de factual como de simbólico. Ou como perguntava um dos cartazes originais do filme: “Onde acaba a viagem de campismo… e começa o pesadelo?”
Deliverance pode ser resumido como uma tragédia em que assistimos à reconversão de um território bruscamente desprovido do seu lendário poder redentor. Da mais básica cumplicidade humana até aos fantasmas da sexualidade, tudo desafia os protagonistas — e, nessa medida, o próprio espectador — para lá das certezas adquiridas sobre o Bem e o Mal. Ironicamente, ou talvez não, Deliverance foi realizado, não por um americano, mas sim um grande cineasta britânico: John Boorman. É um detalhe que nos recorda que muitas componentes do grande cinema americano nunca foram estranhas a referências e contributos da nossa Europa — como uma segunda natureza.