quinta-feira, setembro 08, 2022

Os limites da correção política

Juliette Binoche num papel que não faz justiça ao seu talento

O tráfico de seres humanos surge como pano de fundo de Paradise Highway - Perseguidas, um filme de boas intenções e mau cinema. Com Juliette Binoche e Morgan Freeman à deriva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 agosto).

Há filmes que surpreendem pelo simples facto de existirem. Enfim, dito assim, não passa de uma bizarra verdade de La Palice: se não existissem, obviamente não podiam surpreender… A questão é de outra natureza: que acontece, e como acontece, para que uma reunião de gente indiscutivelmente talentosa dê origem a um objecto de absoluta mediocridade?
No caso de Paradise Highway (entre nós lançado com o subtítulo Perseguidas), realizado pela norueguesa Anna Gutto, a “explicação” talvez não possa ser dissociada de uma moda, aliás, um estilo devedor dos esquematismos narrativos do politicamente correcto. Dir-se-ia que há quem acredite — ou queira que os outros acreditem — que um tema “forte” é garantia automática de cinema minimamente consistente.
Trata-se, neste caso, de contar uma história centrada na “missão” que Sally assume. Motorista profissional, conduz um gigantesco camião de transporte de mercadorias: pressionada pelo irmão (que está a terminar uma pena de prisão e sempre se serviu dela para os seus golpes), aceita ir buscar uma adolescente, de nome Leila, para a entregar aos criminosos que gerem uma rede de prostituição…
Por uma questão de clareza mental, lembremos o humanismo em que nos reconhecemos. Assim, não será necessário sublinhar a perturbação imensa que suscita o facto de existirem circuitos que traficam seres humanos, em particular mulheres. Para se ter uma noção da gravidade do problema e do empenho das autoridades em combater todas as suas manifestações, podemos consultar o site da Europol (agência da União Europeia de combate ao crime) que, nesse campo, define como prioridade o combate a quatro formas de agressão: “exploração sexual, incluindo prostituição; serviços ou trabalhos forçados; escravatura, servidão e práticas relacionadas; remoção de órgãos vitais.”
A questão que se coloca face a um filme não é, entenda-se, a da honestidade ou das boas intenções de quem o faz. É outra e, uma vez mais, de outra natureza: em que termos cinematográficos tudo isso acontece?
No caso de Paradise Highway, estamos perante um “thriller” que acumula banalidades dramáticas, tratadas com a complacência de um telefime com “mensagem”. A começar pelo facto de a personagem de Sally ser assumida por Juliette Binoche — raras vezes se viu uma tão desastrada solução de “casting”, a ponto de a personagem ser totalmente inverosímil. Algo de semelhante se passa com Morgan Freeman, no papel do agente do FBI que investiga o caso, preso em mais uma variação da sua emblemática composição em Seven - Sete Pecados Mortais (1995), de David Fincher.
Há que reconhecer que, no meio de todo este simplismo, a jovem Hala Finley, intérprete de Leila, parece ser a única figura capaz de investir alguma genuína vibração na sua personagem. Infelizmente, no plano cinematográfico, essa personagem vai sendo reduzida a um mero índice “simbólico”, sem outra função que não seja legitimar a correção política do empreendimento.