O que é e, sobretudo, o que significa formatar a circulação de informação consumida por 2,8 mil milhões de pessoas? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 março).
Praticamente desde a sua invenção, o Facebook tem lidado com problemas suscitados pela gestão dos respectivos “conteúdos”, em especial os que possam ser interpretados como incitamentos a formas de violência. E há que reconhecer que Mark Zuckerberg e os seus advogados conseguiram montar um dispositivo “social” que tende a paralisar o nosso pensamento de consumidores: a hiperbolização dos problemas legais enfrentados pelo Facebook vai mascarando as tragédias morais que lhe possam estar associadas.
Por estes dias, surgiu uma nova questão indissociável dessa conjuntura de pensamento que, escusado será sublinhá-lo, é também um sistema mediático de representação do mundo. Segundo as notícias (tomo como referência um artigo da BBC publicado no respectivo site, no dia 11 de março), a empresa Meta, proprietária do Facebook, fez saber que “Facebook e Instagram permitirão em alguns países que os utilizadores apelem à violência contra Vladimir Putin e os soldados russos.”
A tomada de posição da Meta é particularmente explícita: “Tendo em conta a actual invasão da Ucrânia, estabelecemos uma excepção temporária para que os que estão a ser afectados pela guerra possam expressar sentimentos violentos contra as forças armadas invasoras”. A BBC acrescenta que tal determinação permitirá que “os utilizadores de países como a Rússia, a Ucrânia e Polónia possam apelar à morte de Putin, Presidente da Rússa, e Lukashenko, Presidente da Bielorrússia”.
Semelhantes directrizes estão a gerar uma enorme agitação “social” (como, aliás, o Facebook tanto preza). E até mesmo o actual poder político russo, responsável pela terrível orgia de violência a que vamos assistindo dia após dia, achou por bem vir a público comentar o assunto. Num tweet da Embaixada da Rússia nos EUA, surgiu esta “reivindicação”: “Pedimos às autoridades dos EUA que ponham fim às actividades extremistas da Meta e tomem medidas para levar os perpetradores à justiça”. Mais ainda: “Os utilizadores do Facebook e Instagram não deram aos donos dessas plataformas o direito de determinar o critério de verdade, colocando as nações umas contra as outras.”
Seria saudável, creio, que o cinismo diplomático das autoridades russas não nos bloqueasse ainda mais, impedindo-nos de pensar e discutir a ideologia do Facebook. Uma coisa é a profunda revolta que sentimos face à agressão militar do governo russo contra a Ucrânia. Outra coisa, apesar de tudo bem diferente (até porque muito anterior à tragédia que o povo ucraniano está a viver), é o sistema de “vigilância” de que o Facebook se arroga detentor, a ponto de se apresentar como entidade legisladora da circulação de informação no planeta Terra — afinal de contas, estamos a falar de uma plataforma que, em 2020, anunciava possuir 2,8 mil milhões de utilizadores.
Desde o início de tudo isto, há qualquer coisa de obsceno na palavra “social” associada ao Facebook — é mesmo uma palavra reivindicada, formatada e normalizada pelo Facebook. A tal ponto que deixámos de identificar todas as nossas redes (familiares, profissionais, afectivas, etc.) como sociais, aceitando que uma entidade comercial assumisse a exclusividade do seu uso.
Na raiz da concepção do Facebook está a instalação de uma lógica multiplicadora potencialmente infinita. Em 2010, fomos alertados para isso por esse filme prodigioso que é A Rede Social (2010), escrito por Aaron Sorkin e realizado por David Fincher. A avalanche “social” do Facebook, na altura com cerca de 500 milhões de assinantes, era mesmo sustentada por diversos discursos “libertários” (alguns de natureza jornalística) que proclamavam um novo ecumenismo: estamos todos “ligados”, logo isso só pode favorecer a comunhão, a transparência e a paz…
A certa altura, em A Rede Social, numa cena dos tempos da universidade, a personagem de Zuckerberg (Jesse Eisenberg) diz mesmo a Eduardo Saverin, co-fundador do Facebook: “As pessoas querem estar online e saber dos amigos, porque não construir um site que ofereça isso? Amigos, imagens, perfis, tudo o que se possa visitar, navegar, talvez alguém que acabámos de conhecer numa festa… Eduardo, não estou a falar de um site de encontros, estou a falar de recolher toda a experiência social da universidade e colocá-la online.”
Compreendemos agora: “toda a experiência social” significava, afinal, assumir as funções de tribunal da verdade e da mentira, da paz e da violência, no limite em nome da satisfação de 2,8 mil milhões de pessoas. Numa sessão pública realizada a 7 de novembro de 2014 nas instalações do Facebook, Zuckerberg, em pose de bom moralista, não deixou de classificar A Rede Social como um filme “algo ofensivo”. Ainda assim, nessa mesma sessão ficámos a saber que Fincher foi especialmente rigoroso na representação do guarda-roupa de Zuckerberg — a sua “t-shirt” cinzenta era mesmo a indumentária preferida para o dia a dia de trabalho.