Ruth Negga em Passing: o combate de ser e não ser |
O filme Passing/Identidade (Netflix) sabe expor o funcionamento de um sistema racista sem ceder a facilidades panfletárias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 novembro).
As várias formas de militância que têm enquadrado a mais recente produção cinematográfica dos EUA decorrem de uma fundamental urgência política, profissional e simbólica — o lugar das mulheres no seio da indústria e os modos de abordagem das personagens de pele negra definem, justificadamente, dois vectores fundamentais dessa conjuntura.
O que, creio, não nos deverá levar a banalizar os enunciados dessas militâncias, sob pena de deixarmos transformar a densidade dos temas abordados num piedoso inventário de rotinas sem substância. No limite mais medíocre, tem sido reforçada a “ideia” segundo a qual a importância desses temas só pode ser relevada (e até respeitada) através de personagens “positivas”, portadoras de uma “mensagem” imaculada, quase transcendental.
Assim se reforça um velho simplismo narrativo que nunca sabe distinguir duas componentes diversas, por vezes claramente opostas. A saber: a construção de um ponto de vista de um filme (ou de um filme com um ponto de vista) não é um efeito automático, muito menos linear, daquilo que as personagens principais dizem, fazem ou defendem.
Lembremos o caso sintomático de Selma (2014), de Ava DuVernay, recordando um momento nuclear da luta pelo direito de voto para os cidadãos negros e, em particular, o envolvimento de Martin Luther King nessa luta. Reconhecer a vulgaridade dramática do filme (típica de um telefilme de rotina) não envolve qualquer menorização, muito menos ocultação, da importância histórica dos factos abordados — aliás, é a encenação mecânica desses factos que corre mesmo o risco de minimizar os valores humanos e humanistas que inspiram o filme.
Vale a pena lembrar também o exemplo mais próximo desse objecto admirável, de riquíssima textura narrativa e simbólica, que é Da 5 Bloods/Irmãos de Armas (2020), produção Netflix realizada por Spike Lee. Não se poderá dizer que as personagens centrais, quatro afro-americanos que revisitam lugares e enfrentam fantasmas da guerra do Vietname, sejam propriamente figuras santificadas, o que não impede que estejamos perante um dos títulos que mais pode justificar a cristalina aplicação da mensagem #BlackLivesMatter.
A imagem de Clare, a actriz Ruth Negga, contemplando a câmara em Passing/Identidade, de Rebecca Hall (lançamento recente da Netflix) constitui um belo exemplo da fascinante complexidade que tudo isto pode envolver. Trata-se, afinal, de um plano subjectivo, correspondente ao olhar de Irene, a outra personagem central do filme, interpretada por Tessa Thompson.
Que está a acontecer? É, entre os filmes que vi este ano, uma das mais admiráveis cenas de abertura. Momentos antes, vimos Irene entrar no salão de chá daquele hotel de Nova Iorque. Estamos na década de 1920: todos os seus movimentos são discretos e contidos, escondendo os olhos com a aba do seu chapéu, como quem tenta controlar o pânico. Clare chegou pouco depois, numa pose bem diferente — é, obviamente, uma frequentadora habitual daquele espaço.
Quando Clare olha em frente e detecta o olhar, também curioso, mas receoso, de Irene, assistimos a um efeito dramático de perturbante ambiguidade. Por um lado, depois de mais de uma década em que não souberam uma da outra, Clare é a primeira a reconhecer a amiga. Por outro lado, o olhar de Clare envolve a mesma pergunta não dita: “Será que ela está a fazer o mesmo que eu?” Ou seja: a tez mais clara de ambas as mulheres permite-lhes fazerem-se passar por brancas (“passing”) num cenário que, em função das regras sociais dominantes, pertence exclusivamente aos brancos.
O que é extraordinário nestes, e em muitos outros, momentos do filme em que Rebecca Hall se estreia na realização (adaptando o romance homónimo de Nella Larsen) não é a “denúncia” panfletária de um sistema social atravessado pelo racismo — por mais legítimos que sejam os seus protestos ou reivindicações, um filme não se confunde com um discurso concebido para um comício. O que está em jogo é a capacidade cinematográfica — entenda-se: através das matérias e linguagens de um filme — de nos fazer sentir os sinais de olhares, gestos e palavras que pertencem, precisamente, à dinâmica interior desse sistema de discriminação e repressão.
Supera-se, assim, a noção ingénua (por vezes aplicada como censura narrativa) segundo a qual a validade das causas obriga à exclusiva apresentação de personagens “positivas”. Irene e Clare não são “positivas” nem “negativas” — são pessoas vivas. Aquilo que o filme expõe é esse assombramento social cuja crueldade afecta a postura dos corpos, a sua inserção no espaço público e, por fim, a sua verdade mais íntima.