Edgar Morin, por Yann Legendre Le Monde |
Ao completar 100 anos de vida, Edgar Morin publicou um livro sobre as “lições de um século de vida”, viajando por caminhos plurais, da investigação antropológica à recusa de uma sociedade regida por algoritmos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 agosto).
No dia do seu 100º aniversário, Morin publicou no jornal Le Monde um artigo intitulado “Na torrente do século”. Dir-se-ia uma variação ou resumo do “século de vida” referido no título do seu livro. Mas não só: a sua reflexão é eminentemente prospectiva, apostando em identificar os desafios radicais de uma humanidade assombrada pelo Covid-19.
Para Morin, importa continuar a pensar a partir de uma atitude transdisciplinar, integrando contributos de todos os domínios de conhecimento, enfrentando a pluralidade dos acontecimentos históricos, afinal mantendo a postura que ele próprio define como fulcral na sua obra monumental, em seis volumes, La Méthode (Le Seuil, 1977-2004). O terceiro volume possui um título sintomático dessa exigência de permanente discussão do próprio acto de conhecer o mundo à nossa volta: “O conhecimento do conhecimento”.
Morin faz o inventário de alguns momentos a que atribui um peso decisivo no momento global que vivemos, a começar pelo lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima, em 1945, expressão de uma “potência” de destruição que ameaça reduzir-nos à “impotência”. Refere depois o chamado Relatório Meadows, documento publicado pelo Clube de Roma, em 1972, “advertindo a humanidade para o processo de degradação do planeta, tanto na biosfera como na socio-esfera” — recorde-se que o título integral desse documento era “Os Limites do Crescimento (num Mundo Finito)”. Destaca ainda, em 1989-1990, “a invasão do capitalismo na ex-União Soviética e na China comunista”, ao mesmo tempo que, de modo espectacular, eclodiam — e passávamos a usar — os “meios de comunicação imediata.”
É na sequência de tudo isto que surge “a crise provocada pela pandemia do Covid-19”, revelando “a fraqueza de uma ciência que considerávamos toda poderosa”. Descobrimo-nos, assim, na encruzilhada provocada por “um vírus de que podemos analisar as moléculas constitutivas”, embora continuando a ignorar a sua origem, “talvez produto microscópico que escapou a um doutor Frankenstein chinês…”
Mas a cedência a uma qualquer teoria da conspiração não nos salva: há especulações bastante mais consistentes que nos alertam para os dramas potenciais do futuro próximo: “Saberemos mais tarde se a pesquisa de vacinas não desacelerou a pesquisa de remédios, se alguns remédios não foram secundarizados sob pressão de poderosas companhias farmacêuticas, influenciando as autoridades de saúde.”
Podemos descrever o seu pensamento da conjuntura pandémica como um movimento de aproximação e recuo (dialéctico, sem dúvida) face às componentes científicas do nosso mundo. Porquê? Porque, como Morin argumenta na entrevista citada, o progresso técnico não pode ser encarado como um evangelho redentor: “Quanto mais o mundo é técnico, maior é o risco de acidente.”
Morin recorda, em particular, os ensinamentos colhidos nos EUA, na década de 60, em plena “contra-cultura”, junto de Heinz von Foerster (1911-2002), o cientista austríaco habitualmente identificado como fundador da “segunda cibernética”. Segundo ele, os humanos são “máquinas não triviais”, diferentes das que são geradas pelo progresso técnico: “A máquina trivial é a máquina artificial, por nós fabricada e da qual conhecemos o comportamento a partir dos programas que a comandam.” Ora, porque as sociedades humanas não são máquinas triviais, importa reagir contra a acção dos tecnocratas que “acreditam que uma sociedade de algoritmos gerados pela inteligência artificial representaria um progresso harmonioso, quando, de facto, seria opressiva, para não dizer asfixiante.”
Nesta perspectiva, a herança do filme Chronique d’un Été mantém uma perturbante e cristalina actualidade. Logo na cena de abertura, tal como Rouch e Morin explicam a Marceline Loridan (figura fundamental do universo do documentarista Joris Ivens), trata-se de questionar o nosso viver social, começando “apenas” por perguntar a cada um dos inquiridos “como é a sua vida”. E também: o que cada um “faz com a sua vida”.
Não há nada mais político: as ideias que formamos sobre o modo como vivemos definem, determinam e fazem evoluir a nossa pertença a uma determinada realidade social. No caso de Morin, para lá da experiência política e da investigação antropológica, a literatura (Dostoievski, Proust, etc.) sempre foi determinante no movimento de tais ideias. Daí o auto-retrato muito didáctico que ele faz no Philosophie Magazine: “Sou um filósofo selvagem, não sou um filósofo profissional.”
Para Morin, importa continuar a pensar a partir de uma atitude transdisciplinar, integrando contributos de todos os domínios de conhecimento, enfrentando a pluralidade dos acontecimentos históricos, afinal mantendo a postura que ele próprio define como fulcral na sua obra monumental, em seis volumes, La Méthode (Le Seuil, 1977-2004). O terceiro volume possui um título sintomático dessa exigência de permanente discussão do próprio acto de conhecer o mundo à nossa volta: “O conhecimento do conhecimento”.
Morin faz o inventário de alguns momentos a que atribui um peso decisivo no momento global que vivemos, a começar pelo lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima, em 1945, expressão de uma “potência” de destruição que ameaça reduzir-nos à “impotência”. Refere depois o chamado Relatório Meadows, documento publicado pelo Clube de Roma, em 1972, “advertindo a humanidade para o processo de degradação do planeta, tanto na biosfera como na socio-esfera” — recorde-se que o título integral desse documento era “Os Limites do Crescimento (num Mundo Finito)”. Destaca ainda, em 1989-1990, “a invasão do capitalismo na ex-União Soviética e na China comunista”, ao mesmo tempo que, de modo espectacular, eclodiam — e passávamos a usar — os “meios de comunicação imediata.”
É na sequência de tudo isto que surge “a crise provocada pela pandemia do Covid-19”, revelando “a fraqueza de uma ciência que considerávamos toda poderosa”. Descobrimo-nos, assim, na encruzilhada provocada por “um vírus de que podemos analisar as moléculas constitutivas”, embora continuando a ignorar a sua origem, “talvez produto microscópico que escapou a um doutor Frankenstein chinês…”
Mas a cedência a uma qualquer teoria da conspiração não nos salva: há especulações bastante mais consistentes que nos alertam para os dramas potenciais do futuro próximo: “Saberemos mais tarde se a pesquisa de vacinas não desacelerou a pesquisa de remédios, se alguns remédios não foram secundarizados sob pressão de poderosas companhias farmacêuticas, influenciando as autoridades de saúde.”
Podemos descrever o seu pensamento da conjuntura pandémica como um movimento de aproximação e recuo (dialéctico, sem dúvida) face às componentes científicas do nosso mundo. Porquê? Porque, como Morin argumenta na entrevista citada, o progresso técnico não pode ser encarado como um evangelho redentor: “Quanto mais o mundo é técnico, maior é o risco de acidente.”
Morin recorda, em particular, os ensinamentos colhidos nos EUA, na década de 60, em plena “contra-cultura”, junto de Heinz von Foerster (1911-2002), o cientista austríaco habitualmente identificado como fundador da “segunda cibernética”. Segundo ele, os humanos são “máquinas não triviais”, diferentes das que são geradas pelo progresso técnico: “A máquina trivial é a máquina artificial, por nós fabricada e da qual conhecemos o comportamento a partir dos programas que a comandam.” Ora, porque as sociedades humanas não são máquinas triviais, importa reagir contra a acção dos tecnocratas que “acreditam que uma sociedade de algoritmos gerados pela inteligência artificial representaria um progresso harmonioso, quando, de facto, seria opressiva, para não dizer asfixiante.”
Nesta perspectiva, a herança do filme Chronique d’un Été mantém uma perturbante e cristalina actualidade. Logo na cena de abertura, tal como Rouch e Morin explicam a Marceline Loridan (figura fundamental do universo do documentarista Joris Ivens), trata-se de questionar o nosso viver social, começando “apenas” por perguntar a cada um dos inquiridos “como é a sua vida”. E também: o que cada um “faz com a sua vida”.
Não há nada mais político: as ideias que formamos sobre o modo como vivemos definem, determinam e fazem evoluir a nossa pertença a uma determinada realidade social. No caso de Morin, para lá da experiência política e da investigação antropológica, a literatura (Dostoievski, Proust, etc.) sempre foi determinante no movimento de tais ideias. Daí o auto-retrato muito didáctico que ele faz no Philosophie Magazine: “Sou um filósofo selvagem, não sou um filósofo profissional.”