Delphine Seyrig |
É uma das referências incontornáveis do cinema moderno, em particular da produção francesa: O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais, foi lançado a 25 de junho de 1961 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 junho), com o título 'O cinema moderno é uma questão de geometria'.
Alain Resnais |
Claro que a modernidade cinematográfica — entenda-se: a discussão e superação dos modelos que definiram a produção clássica, tanto na Europa como nos EUA — é um fenómeno de muitos filmes que, como todas as convulsões artísticas, não de define a partir de uma única data ou um acontecimento isolado. Seja como for, procurando na dinâmica do cinema que estava a ser feito no começo daquela frondosa década de 60, não haverá muitos títulos capazes de simbolizar o fulgor da modernidade como O Último Ano em Marienbad.
Lembremos o óbvio: Resnais não era um criador solitário, estava até muito bem acompanhado pelos cúmplices da Nova Vaga francesa. Ele era o “velho” companheiro: nascido em 1922, tinha já uma importante obra documental, iniciada em meados dos anos 40, incluindo o fundamental Noite e Nevoeiro (1955), título incontornável na abordagem do Holocausto. De qualquer modo, em 1959, o seu primeiro trabalho de longa-metragem, Hiroshima, Meu Amor, servira de bandeira da ousadia criativa da Nova Vaga, a par de obras tão emblemáticas como O Acossado, de Jean-Luc Godard, e Os 400 Golpes, de François Truffaut.
Durante um debate, algures na década de 60, Godard terá sido questionado sobre o experimentalismo narrativo da Nova Vaga: não seria que, para construir um filme, se impõe que haja “princípio, meio e fim”? A resposta do autor de Pedro, o Louco tornou-se lendária: “Sim, mas não necessariamente por essa ordem.”
Podemos apostar que Resnais não ficaria escandalizado com tal ideia. E não haverá filme mais eloquente para o ilustrar do que O Último Ano em Marienbad — a ponto de ser difícil, para não dizer impossível, resumi-lo através de um sinopse tradicional em que, para lá da clássica ordem narrativa, possamos encontrar os habituais mecanismos de “causa” e “efeito”.
Que acontece, então? Tudo se passa nos sumptuosos cenários de um hotel, verdadeiro labirinto de salões, espelhos e corredores, que alguém descreve de forma paradoxal, objectiva e enigmática. Como se o cinema moderno fosse uma questão de geometria: “Corredores intermináveis sucedem-se a corredores silenciosos e desertos, sobrecarregados por painéis de talha dourada, encravados em mármores negros…”
Que voz nos descreve, assim, aquele local encantado e encantatório? Não sabemos. Estranhamente, as palavras repetem-se, desembocando num salão em que uma plateia de porte aristocrático assiste a uma representação teatral… Mas onde está o teatro? Porque é que as personagens se comportam como se estivessem a debitar o texto de uma peça?
É neste espaço sem fronteiras precisas que um homem se dirige a uma mulher, dizendo-lhe que já se conhecem: ter-se-ão cruzado, um ano antes, nos cenários igualmente grandiosos de Marienbad (nome alemão de Marianske Lazne, estação termal da actual República Checa, na região de Karlovy Vary). Não, diz a mulher: não o reconhece e nunca esteve em Marienbad… Ele é interpretado por Giorgio Albertazzi, ela é Delphine Seyrig — o filme não lhes dá nomes, parecem existir como fantasmas anónimos da sua própria identidade.
Dir-se-ia que viajamos no interior de uma verdadeira performance que existe e respira como um quadro cubista: o espaço está em constante mutação, o tempo não é linear e mesmo quando somos confrontados com a descrição de algo que aconteceu, não temos a certeza se se trata de uma evocação objectiva ou de um quadro gerado por uma imaginação inevitavelmente subjectiva.
Se outros autores da Nova Vaga investiram muito na reconversão, ao mesmo tempo crítica e festiva, de um certo visual clássico (lembremos Godard, em O Acossado, revisitando as memórias de Humphrey Bogart e do filme “noir”), Resnais foi um cineasta seduzido, antes do mais, pelos poderes evocativos das palavras — e, mais concretamente, pela sensualidade da escrita literária.
Daí a sua proximidade com o trabalho de alguns escritores: Hiroshima, Meu Amor tinha argumento de Marguerite Duras, enquanto O Último Ano em Marienbad foi escrito por Alain-Robbe Grillet, na altura um dos expoentes do chamado “Nouveau Roman” (de que o seu La Jalousie, publicado em 1957, tinha sido uma das obras definidoras). O que ambos procuram não é, de facto, uma história em que os comportamentos das personagens possam ser “explicados” por motivações psicológicas mais ou menos reconhecíveis. No limite, O Último Ano em Marienbad é mesmo um filme sobre o assombramento das relações humanas — em particular, as cumplicidades amorosas — e as ilusões construída sobre aquilo que vemos ou julgamos decifrar.
Falecido em 2014, contava 91 anos, Resnais praticou o cinema como essa arte da mais profunda ambiguidade — ver ou não ver, eis a questão. O que, entenda-se, nunca excluiu (bem pelo contrário) os traços de um humor de envolvente delicadeza, em particular nos seus filmes “musicais” como É Sempre a Mesma Cantiga (1997) ou Nos Lábios Não (2003). Sem esquecer que o seu filme final, lançado em 2014, possui um título que tem qualquer coisa de programa político: Amar, Beber e Cantar.