quarta-feira, julho 28, 2021

Regressando a Marienbad (60 anos depois)

Delphine Seyrig

É uma das referências incontornáveis do cinema moderno, em particular da produção francesa: O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais, foi lançado a 25 de junho de 1961 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 junho), com o título 'O cinema moderno é uma questão de geometria'.

Alain Resnais
Em 1961, como era o cinema? Exuberante e contrastado. Em Hollywood, por exemplo, West Side Story, de Robert Wise e Jerome Robbins, celebrava a energia do musical, já não em estúdio, mas em cenários urbanos. O espanhol Luis Buñuel vencia o Festival de Cannes com Viridiana, logo proibido pela ditadura franquista. Itália tinha um ano marcado por La Dolce Vita, de Federico Fellini, A Noite, de Michelangelo Antonioni, e Accattone, primeira longa-metragem de Pier Paolo Pasolini. Entretanto, em França, a 25 de junho, estreava-se O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais — 60 anos depois, o fascínio permanece.
Claro que a modernidade cinematográfica — entenda-se: a discussão e superação dos modelos que definiram a produção clássica, tanto na Europa como nos EUA — é um fenómeno de muitos filmes que, como todas as convulsões artísticas, não de define a partir de uma única data ou um acontecimento isolado. Seja como for, procurando na dinâmica do cinema que estava a ser feito no começo daquela frondosa década de 60, não haverá muitos títulos capazes de simbolizar o fulgor da modernidade como O Último Ano em Marienbad.
Lembremos o óbvio: Resnais não era um criador solitário, estava até muito bem acompanhado pelos cúmplices da Nova Vaga francesa. Ele era o “velho” companheiro: nascido em 1922, tinha já uma importante obra documental, iniciada em meados dos anos 40, incluindo o fundamental Noite e Nevoeiro (1955), título incontornável na abordagem do Holocausto. De qualquer modo, em 1959, o seu primeiro trabalho de longa-metragem, Hiroshima, Meu Amor, servira de bandeira da ousadia criativa da Nova Vaga, a par de obras tão emblemáticas como O Acossado, de Jean-Luc Godard, e Os 400 Golpes, de François Truffaut.

Quem foi a Marienbad?

Durante um debate, algures na década de 60, Godard terá sido questionado sobre o experimentalismo narrativo da Nova Vaga: não seria que, para construir um filme, se impõe que haja “princípio, meio e fim”? A resposta do autor de Pedro, o Louco tornou-se lendária: “Sim, mas não necessariamente por essa ordem.”
Podemos apostar que Resnais não ficaria escandalizado com tal ideia. E não haverá filme mais eloquente para o ilustrar do que O Último Ano em Marienbad — a ponto de ser difícil, para não dizer impossível, resumi-lo através de um sinopse tradicional em que, para lá da clássica ordem narrativa, possamos encontrar os habituais mecanismos de “causa” e “efeito”.
Que acontece, então? Tudo se passa nos sumptuosos cenários de um hotel, verdadeiro labirinto de salões, espelhos e corredores, que alguém descreve de forma paradoxal, objectiva e enigmática. Como se o cinema moderno fosse uma questão de geometria: “Corredores intermináveis sucedem-se a corredores silenciosos e desertos, sobrecarregados por painéis de talha dourada, encravados em mármores negros…”
Que voz nos descreve, assim, aquele local encantado e encantatório? Não sabemos. Estranhamente, as palavras repetem-se, desembocando num salão em que uma plateia de porte aristocrático assiste a uma representação teatral… Mas onde está o teatro? Porque é que as personagens se comportam como se estivessem a debitar o texto de uma peça?
É neste espaço sem fronteiras precisas que um homem se dirige a uma mulher, dizendo-lhe que já se conhecem: ter-se-ão cruzado, um ano antes, nos cenários igualmente grandiosos de Marienbad (nome alemão de Marianske Lazne, estação termal da actual República Checa, na região de Karlovy Vary). Não, diz a mulher: não o reconhece e nunca esteve em Marienbad… Ele é interpretado por Giorgio Albertazzi, ela é Delphine Seyrig — o filme não lhes dá nomes, parecem existir como fantasmas anónimos da sua própria identidade.
Dir-se-ia que viajamos no interior de uma verdadeira performance que existe e respira como um quadro cubista: o espaço está em constante mutação, o tempo não é linear e mesmo quando somos confrontados com a descrição de algo que aconteceu, não temos a certeza se se trata de uma evocação objectiva ou de um quadro gerado por uma imaginação inevitavelmente subjectiva.

Cinema & música

Se outros autores da Nova Vaga investiram muito na reconversão, ao mesmo tempo crítica e festiva, de um certo visual clássico (lembremos Godard, em O Acossado, revisitando as memórias de Humphrey Bogart e do filme “noir”), Resnais foi um cineasta seduzido, antes do mais, pelos poderes evocativos das palavras — e, mais concretamente, pela sensualidade da escrita literária.
Daí a sua proximidade com o trabalho de alguns escritores: Hiroshima, Meu Amor tinha argumento de Marguerite Duras, enquanto O Último Ano em Marienbad foi escrito por Alain-Robbe Grillet, na altura um dos expoentes do chamado “Nouveau Roman” (de que o seu La Jalousie, publicado em 1957, tinha sido uma das obras definidoras). O que ambos procuram não é, de facto, uma história em que os comportamentos das personagens possam ser “explicados” por motivações psicológicas mais ou menos reconhecíveis. No limite, O Último Ano em Marienbad é mesmo um filme sobre o assombramento das relações humanas — em particular, as cumplicidades amorosas — e as ilusões construída sobre aquilo que vemos ou julgamos decifrar. Falecido em 2014, contava 91 anos, Resnais praticou o cinema como essa arte da mais profunda ambiguidade — ver ou não ver, eis a questão. O que, entenda-se, nunca excluiu (bem pelo contrário) os traços de um humor de envolvente delicadeza, em particular nos seus filmes “musicais” como É Sempre a Mesma Cantiga (1997) ou Nos Lábios Não (2003). Sem esquecer que o seu filme final, lançado em 2014, possui um título que tem qualquer coisa de programa político: Amar, Beber e Cantar.