segunda-feira, dezembro 28, 2020

O ano em que Godard
fez 90 anos [3/4]

Brigitte Bardot, O Desprezo (1963)

No dia 3 de dezembro, Jean-Luc Godard celebrou 90 anos. Do cinema clássico à sedução das novas tecnologias, a sua obra de mais de seis décadas evolui em paralelo com as convulsões das sociedades: ele é um experimentador e, à sua maneira, um observador crítico das histórias individuais e colectivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Godard, o louco'.

[ 1 ]  [ 2 ]

A dimensão social dos filmes de Godard envolve [mesmo], por vezes, a integração dos símbolos mais universais do continente cinematográfico. Ou seja: as estrelas. A noção segundo a qual o experimentalismo godardiano foi acontecendo apenas através de actores mais ou menos marginais, sem qualquer relação afectiva com o chamado grande público, é mesmo produto de uma disparatada cegueira histórica. 
Será preciso recordar o caso exemplar de O Desprezo (1963)? Ao fazer a crónica dos bastidores da rodagem de um filme na ilha de Capri, tendo como ponto de partida o romance homónimo de Alberto Moravia, Godard integrava no elenco um outro dos seus mestres, o alemão Fritz Lang (“no papel de Fritz Lang”), a par de Michel Piccoli e Brigitte Bardot — e não será exagero sublinhar que Bardot, mais do que um símbolo do cinema francês, era uma das grandes estrelas internacionais. 
E que dizer do paradoxo de Tudo Vai Bem? Estava-se em 1972 e Godard saía da chamada “fase militante”: os seus filmes sobre as clivagens do pós-Maio de 68 ilustravam a utopia de fazer “politicamente filmes políticos”, ao mesmo tempo que enfrentavam imensas dificuldades de difusão. Como superar esse isolamento? Reflectindo sobre tais impasses, sem dúvida, mas também voltando a fazer um filme no coração da grande indústria: Tudo Vai Bem tem chancela da Gaumont francesa, contando com duas estrelas que há muito tinham transcendido as fronteiras dos respectivos países. Quer dizer: a americana Jane Fonda e o francês Yves Montand. 
Estamos, afinal, a falar do cineasta que vive os efeitos de Maio de 68 estipulando a necessidade de não encerrar o labor cinematográfico nos limites das fronteiras nacionais. Na prática, isso levou-o a Inglaterra para rodar One Plus One (“um mais um” porque era preciso “recomeçar do zero”). Não exactamente para fazer uma “reportagem”, antes para acompanhar os Rolling Stones durante as sessões de gravação do álbum Beggars Banquet… Aliás, contra a opinião de Godard, o filme passou a ser distribuído como Sympathy for the Devil, título da faixa de abertura do álbum [trailer — restauro 4K].