O clássico M - Matou, de Fritz Lang, persiste como um testemunho perturbante da Alemanha do começo da década de 1930, ao mesmo tempo que a sua abordagem do medo continua a ecoar nos espectadores que somos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Abril).
Reencontrei, há dias, a imagem de Peter Lorre, interpretando o assassino de crianças na obra-prima de Fritz Lang, M - Matou (1931), o seu primeiro filme sonoro. A partir do momento em que, num espelho, vê que alguém desenhou a letra “M” nas costas do seu sobretudo, a personagem de Hans Beckert descobre-se habitada por um medo radical. Porquê? Porque sabe assim que outras personagens já pressentiram a sua condição de assassino (“Mörder”) e, mais do que isso, porque uma simples letra o transformou em símbolo ambulante dos seus próprios crimes.
Fritz Lang |
O medo de Beckert é um fascinante objecto narrativo. E, não tenhamos dúvidas, um instrumento fulcral no edifício moral de Lang, aliás expondo uma ambivalência dramática que iria contaminar vários títulos admiráveis do seu período em Hollywood, incluindo Fúria (1936) O Segredo da Porta Fechada (1947) e A Verdade e o Medo (1956).
Que acontece, então? Abominamos os crimes de Beckert, ao mesmo tempo que sentimos o seu medo como entidade palpável, humana, insuportavelmente humana. Não por acaso, M - Matou viria a inscrever-se no imaginário cinéfilo — e, mais do que isso, nas memórias da Alemanha do começo da década de 30 — como um objecto premonitório da ascensão do nazismo. O que nele vemos não é, porém, qualquer “figuração” do poder nazi, antes a exposição de um estado das coisas em que o medo circula como uma verdadeira moeda de troca comunitária, cristalina e perversa: cada um reconhece o outro como peça do mesmo xadrez em que se joga o jogo do medo, sem que ninguém saiba muito bem qual o seu lugar no tabuleiro social, que movimentos pode ou deve executar.
Os registos históricos recordam-nos que Lang estava longe de ser um simples observador dessa teia social e política enredada em muitas formas de medo. Em meados de 1933, pouco tempo depois de o ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, o ter convidado para dirigir os célebres estúdios da UFA, acabaria mesmo por deixar a Alemanha, primeiro para Paris (onde ainda rodou Liliom, datado de 1934), depois para os EUA (estreando-se em Hollywood com o citado Fúria, protagonizado por Spencer Tracy e Sylvia Sydney).
O envolvente poder emocional de M - Matou transcende a sua condição fundamental de testemunho de uma época, inclusive na genial utilização dos recursos nascentes do cinema sonoro. O tratamento do medo é tanto mais efectivo sobre a nossa condição de espectadores quanto o sentimos, não como uma abstracção teórica, antes como um elemento visceral da história de Beckert. Dito de outro modo: ele é o monstro que faz medo, e é também um monstro que tem medo.
É bem possível que a história dos filmes, em paralelo com a história das sociedades, possa ser percorrida como um sistema de variações sobre o medo, suas figuras, efeitos, imaginários e imaginações. Penso, por exemplo, em momentos emblemáticos da atribulada década de 70 como Tubarão (1975), de Steven Spielberg, ou Alien - O Oitavo Passageiro (1979), de Ridley Scott.
Para lá de tudo aquilo que os distingue, por ambos perpassa o mesmo desencantado esgotamento de qualquer imagem redentora da mãe Natureza: no primeiro caso, com a sua expressão mais poderosa (tubarão) a expor a vulnerabilidade dos humanos; no segundo, levando essa vulnerabilidade ao ponto de o corpo humano poder acolher o próprio objecto (“alien”) do medo.
Receio que muitas generalizações correntes, a começar pela que define o medo como “tema” exclusivo do género de terror, sejam inadequadas para dar conta destas nossas relações com o medo cinematográfico. De facto, não parece suficiente encarar o medo como algo que seja gerado, ou esteja ligado, a “objectos” específicos — por exemplo, a obra de um cineasta tão genial como Alfred Hitchcock pode ser vista como um conjunto de variações sobre o vazio de que o medo nasce, ou onde se pode instalar.
O que encontramos em filmes como M - Matou é, afinal, essa proximidade do medo como “coisa” que não existe como uma excepção da identidade humana, antes como uma presença que nunca nos abandona. Saber e partilhar tal reconhecimento, eis uma arte difícil para a qual alguns filmes nos convocam.