Com a estreia do episódio nº 9 de Star Wars, está encerrada a saga inter-galáctica concebida por George Lucas há mais de quatro décadas. Mas já não é o seu nome que identifica o fenómeno: agora, a galáxia muito, muito distante pertence aos estúdios Disney — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Dezembro).
Nestes tempos em que tudo pode ser objecto de mercantilização, talvez seja adequado cedermos à linguagem dos tecnocratas, resumindo a história de Star Wars num número: 4,05. Não será muito impressionante, convenhamos. Mas devemos ser mais explícitos: 4,05 mil milhões de dólares, qualquer coisa como 3,6 mil milhões de euros (quase sete vezes a despesa prevista para a Cultura, em Portugal, no Orçamento de Estado para 2020). Foi esse o valor que, em 2012, os estúdios Disney pagaram para adquirir a Lucasfilm, precisamente a empresa através da qual George Lucas geriu as suas histórias de uma galáxia muito, muito distante.
A Ascensão de Skywalker é, assim, o terceiro título da saga concebido, produzido e distribuído pela marca Disney, depois de O Despertar da Força e Os Últimos Jedi, respectivamente em 2015 e 2017. Uma hipótese clássica, simplista e sedutora levar-nos-ia a especular sobre o modo como o estúdio do Rato Mickey e do Pato Donald “respeitou” ou “atraiçoou” o legado de Lucas. Na verdade, podemos poupar nas especulações. No seu livro de memórias, The Ride of a Lifetime (publicado em setembro deste ano), Bob Iger, CEO da Walt Disney Company, fornece um quadro objectivo do que aconteceu.
Assim, ao vender o seu estúdio de produção, Lucas achou por bem fornecer aos executivos da Disney um projecto com as linhas gerais de argumento que ele considerava interessantes para a derradeira trilogia de Star Wars, agora encerrada com A Ascensão de Skywalker. Com o apoio de Alan Horn, director criativo da companhia, Iger analisou o projecto, tendo ambos considerado que era lógico que o comprassem a Lucas. “Claro que estávamos abertos às ideias de George Lucas.” Sem deixar de sublinhar: “(…) no acordo de compra deixámos claro que não estaríamos contratualmente obrigados a aderir às linhas de argumento que ele definira.”
Há outra maneira de dizer isto. E não apenas porque, seja qual for a avaliação que cada espectador possa fazer destes títulos mais recentes, Star Wars já não existe, de facto, com um “produto da imaginação de George Lucas”. Acontece que este exílio multimilionário de Lucas encerra também um perverso conto moral sobre o fim da noção de independência criativa que ele tão exemplarmente simbolizou.
As galáxias podem ser as mesmas, mas tudo acontece agora numa outra paisagem de produção em que se esbateu o protagonismo dos autores que entraram na história com o rótulo carinhoso de “Movie Brats” (qualquer coisa como “a miudagem dos filmes”). Observe-se a sua contraditória actualidade. Francis Ford Coppola conseguiu, este ano, completar a montagem final (“final cut”) da sua obra-prima de 1979, Apocalypse Now — por irónica coincidência, o filme chega também esta semana às salas portuguesas e, apesar da sua irredutível importância histórica e estética, constitui um heróico acontecimento minoritário, claramente exterior às estratégias dominantes no mercado... Por sua vez, Martin Scorsese realizou o prodigioso O Irlandês com o dinheiro, e também a liberdade criativa, que a Netflix lhe concedeu, mas a plataforma de streaming persiste numa estratégia de confronto com as empresas tradicionais de distribuição/exibição, a ponto de em vários países (incluindo Portugal) o filme não passar nas salas escuras.
Hollywood, de facto, já não é o que era. O protagonismo do realizador J. J. Abrams na fase Disney de Star Wars é revelador — foi ele que dirigiu O Despertar da Força, reassumindo as mesmas funções em A Ascensão de Skywalker. Lucas era um experimentador, um “criador de ilusões” à maneira tradicional de George Méliès (1861-1938), o ilusionista francês que foi pioneiro cinematográfico. Não por acaso, o sucesso comercial do seu Star Wars — entre nós ainda estreado como A Guerra das Estrelas — levou-o a desenvolver um império de produção que integra alguns dos estúdios mais sofisticados dos EUA no domínio do som (Skywalker Sound) e dos efeitos visuais (Industrial Light & Magic).
Abrams será um novo “movie brat”, mas agora de uma geração mais marcada pela vertigem visual dos videojogos (vejam-se os dois títulos de outra saga, Star Trek, por ele realizados em 2009 e 2013) do que pelos valores clássicas das narrativas “hollywoodianas”. Para ele, a tecnologia não é uma área de pesquisa, antes uma colecção de instrumentos que lhe permite criar variações mais ou menos exuberantes de modelos cujas regras reconhece, mas que, na prática, já não integram o seu imaginário. Por alguma razão, Lucas e Abrams discordaram sobre os resultados de O Despertar da Força. Mais uma vez, foi o livro de Iger que tornou pública essa discussão: Lucas considerando que o filme não trazia “nada de novo”, Abrams reiterando a sua admiração por Lucas e dizendo compreender que “deve ser complicado" ter vendido “o seu bebé”...
Em qualquer caso, a saga fica, agora, completa. Na primeira trilogia rodada, Lucas apenas dirigiu o título inicial, entregando a realização de O Império Contra-Ataca (1980) e O Regresso de Jedi (1983) a Irving Kershner e Richard Marquand, respectivamente. Regressou para realizar A Ameaça Fantasma (1999), O Ataque dos Clones (2002) e A Vingança dos Sith (2005). Agora, os dois filmes de Abrams tiveram pelo meio Os Últimos Jedi, de Rian Johnson.
Fica uma indefinição que, como é óbvio, os estúdios Disney têm sabido instalar (entenda-se: rentabilizar) no imaginário comercial da saga. Assim, é verdade que os nove episódios “canónicos”, previstos e programados por Lucas nos tempos heróicos da década de 1970, estão concluídos. Mas não é menos verdade que as derivações, cinematográficas ou televisivas, andam por aí — recordemos apenas os exemplos de Rogue One (2016) e Solo (2018), ambos explorando “outras vidas” de algumas personagens da saga.
Se quisermos ser nostálgicos, diremos que há em tudo isto um retorno do primitivo conceito de “serials”, especialmente importante na evolução cinematográfica das décadas de 1930-40, depois da consolidação do som. Talvez que a “produção em série” de universos como Star Wars seja uma espécie de derivação pós-moderna, intelectual e digital, desses modelos de produção que, em qualquer caso, existiam através de um mercado bem diferente do actual, porque totalmente centrado e concentrado nas salas escuras.
Se gostamos de cultivar o paradoxo artístico, seremos inevitavelmente levados a lembrar que George Lucas se estreou na longa-metragem há quase meio século, em 1971, com THX 1138 (a meu ver, o seu melhor filme). Explorando vectores clássicos da ficção científica — tudo acontecia no século XXV, numa sociedade que proibira as relações sexuais, estando o policiamento a cargo de andróides —, o filme inscreveu-se na história da produção americana como um caso modelar do espírito independente da época, a par de Mean Streets (1973), de Martin Scorsese, ou O Fantasma do Paraíso (1974), de Brian De Palma.
Se nos ficarmos pela prudência do cepticismo, poderemos perguntar até que ponto — ou de que modo — tudo aquilo que tem acontecido nas últimas três décadas, incluindo o crescente e devastador poder normativo dos filmes de super-heróis da Marvel, corresponde já a um conceito de mercado cada vez mais distante dos valores clássicos da cinefilia e, sobretudo, mais movido pelas lógicas económicas do “streaming” (filmes, séries, etc.). Com ironia ou angústia (o leitor faça a sua escolha), não podemos deixar de lembrar que, em 2009, a Marvel Entertainment foi comprada pelos... estúdios Disney. O preço: 4 mil milhões de dólares.