Vivre sa Vie (1962) |
Com a morte de Anna Karina, redescobrimos, em particular, a herança artística do seu trabalho nos filmes realizados por Jean-Luc Godard: Viver a sua Vida pode servir de mote para as nossas memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Novembro).
Em Viver a sua Vida (1962), um dos filmes em que foi dirigida por Jean-Luc Godard, então seu marido, Anna Karina interpreta Nana, uma prostituta de Paris. Trata-se de um dos momentos em que Godard integra o tema da prostituição nas suas narrativas, directa ou indirectamente expondo a mercantilização do corpo e o esvaziamento da alma como componentes viscerais do “progresso” nas sociedades modernas. Ao tema regressaria, por exemplo, em duas produções de 1967, Duas ou Três Coisa sobre Ela e Antecipação (episódio da longa-metragem A Mais Antiga Profissão do Mundo, também com Karina), ou Salve-se quem Puder (1980).
Seja como for, convém lembrar que não há em Viver a sua Vida nada que se possa confundir com a sociologia de bolso que, hoje em dia, muitas vezes, vai pontuando as mais banais narrativas (cinematográficas e televisivas) que se escudam na “gravidade” dos respectivos temas. Ao filmar Karina como Nana, Godard constrói uma das mais belas confissões de amor que a história do cinema regista — em última instância, Viver a sua Vida é uma crónica intimista sobre o olhar do cineasta face a uma mulher.
Momento sublime desse intimismo é a cena em que uma personagem masculina lê para Nana O Retrato Oval, de Edgar Allan Poe, publicado em 1842. O brevíssimo conto de Poe condensa o misto de ternura e crueldade que pode marcar a relação de um artista com o seu modelo. Dito de forma esquemática, nele se narra a tragédia de um pintor que, obcecado pela sua arte, vai pintando o retrato da sua mulher cujo estado de saúde é cada vez mais frágil; ao concluir, siderado pela intensidade do seu labor, proclama que aquele retrato “é a própria vida” — nesse momento, descobre que, enquanto posava, a sua mulher morreu.
Rezam as crónicas que o casamento de Karina e Godard (desfeito em 1967) foi atribulado e terminou de forma triste. Enfim, por uma vez, face à nitidez da morte e, sobretudo, celebrando a exuberância da vida, podemos dispensar a crónica cor de rosa. E lembrar que o seu trabalho conjunto define um capítulo à parte, não apenas na filmografia godardiana, mas em toda a paisagem da Nova Vaga francesa.
Em boa verdade, mesmo tendo em conta que a sua filmografia se prolongou por mais algumas décadas, uma actriz como Karina pertence a um imaginário cinematográfico que, muitas vezes, os espectadores mais jovens não conhecem nem reconhecem. No limite, o actor/actriz vivia perante a câmara de filmar, não o confessionalismo patético dos “famosos”, mas sim esse despojamento do ser (e do estar) que torna o cinema uma experiência única e irredutível.
Vale a pena recordar que o nome de Anna Karina ocupa também um lugar muito especial na história da exibição cinematográfica em Portugal, através de um dos títulos mais belos (e também mais polémicos) da Nova Vaga: A Religiosa (1966), de Jacques Rivette, adaptando a obra de Denis Diderot. Estreado em Portugal no pós-25 de Abril (em 1975), seria um dos maiores sucessos de exibição do cinema Quarteto, programado por Pedro Bandeira Freire. À distância de mais de quatro décadas, já não há Quarteto e a cinefilia tornou-se uma resistência minoritária. Tal memória poderá parecer uma banal especulação de ficção científica. Mas não, é apenas um dado jornalisticamente objectivo.