quinta-feira, setembro 27, 2018

Ian McEwan, o realismo e os filmes

Ian McEwan
A estreia de A Balada de Adam Henry, baseado num romance de Ian McEwan, justifica a evocação de um filme marcante na abordagem da era Thatcher — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Setembro), com o título 'O pequeno teatro da política'.

A estreia de A Balada de Adam Henry, o belo filme de Richard Eyre inspirado no romance homónimo de Ian McEwan (ed. Gradiva), adaptado pelo próprio, recorda-nos um valor que tantas vezes esquecemos: há uma tradição do cinema britânico, intransigentemente realista, que sempre se empenhou em lidar com as convulsões sociais. Não para gerar grandes abstracções dramáticas, antes para nos mostrar como os verdadeiros dramas podem ser lidos e compreendidos nos seus lugares mais restritos e fechados, numa palavra, individuais.
Lembrei-me, assim, da primeira realização cinematográfica de Eyre, também com argumento de McEwan (neste caso, escrito directamente para cinema). Foi há 35 anos, em 1983. Tem o sugestivo título original The Ploughman’s Lunch, ou seja, à letra, “O almoço do lavrador”. A expressão, corrente na língua inglesa, surge no filme associada a um truque publicitário: trata-se de conceber uma campanha para vender ao consumidor urbano refeições que, através de um simbolismo paternalista, são associadas a uma “verdade” popular.
Tal mentira simbólica funciona como uma espécie de espelho da falsidade moral de um jornalista da BBC, de seu nome James Penfield (interpretado pelo excelente Jonathan Pryce), tentando singrar num contexto histórico marcado por duas componentes fundamentais: a Guerra das Malvinas e a consolidação apoteótica de Margaret Thatcher no poder. Em jogo estão, afinal, as possíveis ambivalências ou perversidades no tratamento jornalístico dos factos. Daí o título com que The Ploughman’s Lunch foi lançado nas salas portuguesas: A Verdade dos Factos.
Lembrei-me, sobretudo, de uma sequência admirável, capaz de bater aos pontos muitas “ousadias” que se vão fazendo através do suposto cruzamento de “documentário” e “ficção”. Assim, a certa altura, acompanhado por dois colegas de trabalho, Penfield vai fazer a cobertura jornalística da Conferência do Partido Conservador, em Brighton (Outubro 1982) [quadro de Paul Brason]. Mas não se trata de encenar algures, porventura em estúdio, alguns momentos dessa cobertura, alternando-os com imagens da própria conferência. Nada disso: Eyre arranjou maneira de colocar os seus actores no interior do cenário da conferência, instalando uma fascinante duplicidade: continuamos a seguir a história que o filme nos está a contar, experimentando, em absoluta simultaneidade, a sensação de recebermos materiais de reportagem da própria conferência (incluindo imagens de Thatcher — ver a partir de 03m 48s).


Admirável agilidade realista, invulgar pragmatismo filosófico, do grande cinema britânico: o que assim se mostra é a condição prática da política como pequeno teatro e, nessa medida, o poder de representação que o cinema lhe pode contrapor.
Não se trata de favorecer qualquer espontaneísmo banalmente televisivo, antes de mostrar que, quando contamos histórias, não estamos a afastar-nos do real: de forma mais ou menos consciente, integramo-lo nas formas decorrentes do nosso trabalho, quer dizer, da nossa responsabilidade narrativa — grande lição de cinema, preciosa pedagogia sobre a singularidade das imagens e as muitas faces da sua existência.