domingo, maio 20, 2018

Na intimidade do Facebook

[TIME]
De que falamos quando falamos do Facebook? Ou ainda: porque é quando especulamos sobre aquilo que o Facebook devia ser, quase ninguém se confronta com aquilo que o Facebook é? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Maio).

Vejo e revejo as imagens de Mark Zuckerberg, sentado, em postura oficial, a responder a uma comissão do Congresso dos EUA. São imagens reproduzidas vezes sem conta, ligadas às mais contrastadas considerações sobre o passado, presente e futuro dessa entidade a que ele deu o nome emblemático, entretanto mitológico, de Facebook.
Num tempo em que proliferam as “análises” sobre os elementos mais irrisórios do nosso mundo, não encontro qualquer empenho em pensar a própria designação de “rede social”. Perguntando, por exemplo, o que é que aconteceu para que, em poucos anos, a noção de “social” tivesse passado a existir como equivalente único dos links que podemos estabelecer com o vizinho do lado ou o anónimo do outro lado do planeta.
São cada vez menos os que se lembram que o “social” começa na soleira da nossa porta, não na ligação virtual que, eventualmente, nos permite perceber que um cidadão de uma remota aldeia dos confins de um continente de outro hemisfério consome a mesma marca de bolachas… Deprimente social.
A Rede Social
Não terei a ousadia de demonizar a felicidade dos que, todos os dias, vivem tais rituais de conhecimento virtual. Ainda assim, cinéfilo impenitente, não posso deixar de reparar como as recentes peripécias da vida de Zuckerberg têm servido para denegrir o filme que David Fincher realizou, em 2010, sobre o nascimento do Facebook – e que se chama, justamente, A Rede Social.
Admirável filme, digo eu. Mas não é um mero juízo de valor que está em causa. O que me parece desconcertante é o facto de tal reavaliação fazer parte de um processo mais geral de que Zuckerberg, sintomaticamente, tem sido o principal porta voz. A saber: importa superar todo este drama – 87 milhões de pessoas cujos dados pessoais foram tratados como mercadoria –, criando melhores condições técnicas de gestão dos elementos privados…
Evitemos as generalizações fáceis. Não rasuremos o facto de, melhor ou pior, o Facebook existir como factor incontornável do sistema contemporâneo de organização do espaço vivo dos humanos. O certo é que estamos a falar do triunfo de uma cultura (entenda-se: um sistema de relações e valores de vida) que considera “normal” que os dados mais pessoais – incluindo as imagens – sejam expostos e, de alguma maneira, doados como elementos de partilha global. Desde quando esta brutal reconversão da própria noção de intimidade (e dessa coisa outrora respeitada que e o pudor) se tornou um banal problema técnico? Onde esta um político para colocar essa pergunta?