quarta-feira, fevereiro 28, 2018

Nina Simone, 1958

Foi há 60 anos que Nina Simone gravou as suas primeiras canções para a companhia Bethlehem Records. Num só dia, nos Belltone Studios, em Nova York, registou 14 temas, do clássico Porgy (I Loves You, Porgy), de Gershwin, até My Baby Just Cares for Me, da dupla Walter Donaldson/Gus Kahn, passando por Central Park Blues, de sua autoria — era, não exactamente o nascimento de uma estrela, mas a afirmação de uma criadora de génio.
Mood Indigo: The Complete Bethlehem Singles vem, finalmente, antologiar tais registos, num alinhamento que reproduz a ordem do seu lançamento em sucessivos singles (10 deles integraram o seu álbum de estreia, Nina Simone, muitas vezes identificado também como Little Girl Blue). Eis duas das suas canções: Love Me or Leave Me e Little Girl Blue, esta num concerto de 1976, no Festival de Montreux.



Amy Winehouse — uma gravação inédita

Segundo informação há muito divulgada pela Universal Music, as gravações não editadas de Amy Winehouse (1983-2011) foram destruídas, de modo a evitar explorações abusivas da sua herança. O certo é que, agora, surgiu na Net uma das mais antigas dessas gravações, datada de 2001, quando Winehouse tinha 17 anos. A canção, intitulada My Own Way, foi divulgada pelo músico londrino Gil Cang (que a compôs com James McMillan e Maryanne Morgan). Como revelou ao Camden New Journal, Cang encontrou a gravação nos seus arquivos, achando por bem dá-la a conhecer — uma pequena pérola de uma das figuras maiores da música popular do século XXI.

A intimidade em 10 filmes

O ciclo 'Amor & Intimidade' constitui uma preciosa oportunidade para ver ou rever alguns filmes que desafiam as representações correntes, mais ou menos virtuais, ditas sociais, da pulsão amorosa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Fevereiro), com o título 'Dez filmes para redescobrir o amor e a sua intimidade'.

Será possível ver e pensar os filmes para além da aceleração mediática em que vivemos? Mais do que isso: será possível superar as visões anedóticas do passado cinéfilo e manter uma relação viva, de prazer e descoberta, com os filmes mais “antigos”? Pois bem, o ciclo ‘Amor & Intimidade’, [a partir de hoje] no cinema Nimas, responde afirmativamente a tais questões, propondo uma dezena de títulos unidos por um tema transversal — a fronteira entre público e privado —, todos eles acompanhados por debates. A organização pertence ao Instituto de História da Arte, em colaboração com a Medeia Filmes e a Leopardo Filmes, com a participação de investigadores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
O texto de apresentação contém uma pergunta cuja pertinência, face às convulsões do nosso presente, importa sublinhar: “Como encarar o facto de as redes sociais alimentarem uma cultura cada vez mais confessional onde já não parece haver lugar para qualquer pudor a respeito da sobre-exposição do EU?”.
Está, assim, em jogo tudo aquilo que faz do privado esse domínio de personagens, comportamentos e valores que, por definição, resiste à exposição pública. Os conceitos de “amor” e “intimidade” que o título refere não são, por isso, sugestões de um qualquer romantismo abstracto — são temas enredados com a sensibilidade e os desejos, a vida e a morte de personagens muito concretas.
O título de abertura, Deus Sabe Quanto Amei (1958), de Vincente Minnelli, e A Minha Noite em Casa de Maud (1969), de Eric Rohmer, serão símbolos exemplares de todas essas dinâmicas, sendo também duas das raridades que o ciclo propõe. O filme de Minnelli é um objecto lendário que pode resumir a glória romanesca da idade de ouro de Hollywood; com um elenco que inclui Frank Sinatra, Shirley MacLaine e Dean Martin, nele se conta uma história em que a intensidade do amor passa também pelas palavras que não se dizem. Daí o feliz contraste: A Minha Noite em Casa de Maud é o exemplo mais sofisticado do “cinema de palavras” segundo Rohmer, um mergulho na intimidade cujo pudor na exposição dos corpos vai a par da erotização da fala.

“Boy meets girl”

Uma Lição de Amor (1954), de Ingmar Bergman, O Medo (1954), de Roberto Rossellini, e Hiroshima, Meu Amor (1959), de Alain Resnais, são referências clássicas que regressam, de algum modo ilustrando uma vontade de perscrutação dos enigmas humanos que antecipa a eclosão das “novas vagas” da década seguinte (sendo já o filme de Resnais um emblema desse movimento em contexto francês). Nas suas peculiaridades formais e narrativas, os filme de Leos Carax, Paixões Cruzadas (1984), e Philippe Garrel, O Coração Fantasma (1995), surgem como herdeiros directos dessas “novas vagas”; o de Carax apresenta mesmo um título original que, no imaginário popular, resume o fulgor poético das histórias de amor: Boy Meets Girl (à letra: “rapaz encontra rapariga”),
Saúde-se também o reaparecimento de Buffalo ’66 (1998), de e com Vincent Gallo, filme fortemente castigado na altura do seu lançamento, de tal modo foi apropriado pelos arautos do “escândalo”: pela sua história passional perpassam os silêncios e mistérios, porventura a própria irrisão, que o impulso amoroso pode conter. Tudo isto sem esquecer a importância fulcral de Irène (2009), com o realizador Alain Cavalier a utilizar a sua pequena câmara de vídeo para elaborar uma memória da actriz Irène Tunc (1934-1972) com quem foi casado — uma demonstração muito real de que é possível ser-se radicalmente intimista através dos meios do cinema, recusando a obscenidade emocional da “reality TV”.
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21 Fevereiro
DEUS SABE QUANTO AMEI (1958)
de Vincente Minnelli

7 Março
UMA LIÇÃO DE AMOR (1954)
de Ingmar Bergman

21 Março
IRÈNE (2009)
de Alain Cavalier

4 Abril
HIROSHIMA, MEU AMOR (1959)
de Alain Resnais

18 Abril
O CORAÇÃO FANTASMA (1995)
de Philippe Garrel

2 Maio
A MINHA NOITE EM CASA DE MAUD (1969)
de Eric Rohmer

16 Maio
BUFFALO ’66 (1998)
de Vincent Gallo

30 Maio
O MEDO (1954)
de Roberto Rossellini

6 Junho
DOLLS (2002)
de Takeshi Kitano

20 Junho
PAIXÕES CRUZADAS (1984)
de Leos Carax

terça-feira, fevereiro 27, 2018

Lewis Gilbert (1920 - 2018)

[The Guardian]
Dirigiu três filmes de James Bond: o realizador inglês Lewis Gilbert faleceu no dia no 23 de Fevereiro, no Mónaco — contava 97 anos.
Foi assistente de Alfred Hitchcock em A Pousada da Jamaica (1939), tendo integrado a unidade cinematográfica da Royal Air Force no período da Segunda Guerra Mundial. Com uma carreira de realizador iniciada na segunda metade da década de 40, foi-se impondo como uma artesão capaz de corresponder às necessidades dos mais variados géneros, com destaque para o policial e o filme de guerra. Alfie (1966), porventura o seu melhor filme, uma amarga comédia dramática com Michael Caine, viria a consagrá-lo no seio da indústria, abrindo-lhe caminho para o universo de James Bond (Alfie teria um remake, em 2004, com Jude Law). Gilbert dirigiu, assim, 007 - Só Se Vive Duas Vezes (1967), com Sean Connery, 007 - Agente Irresistível (1977) e 007 - Aventura no Espaço (1979), ambos com Roger Moore. Entre os seus títulos mais conhecidos, incluem-se ainda A Educação de Rita (1983) e Shirley Valentine (1989). Em 1990, no âmbito dos BAFTA, foi distinguido com o prémio honorário Michael Balcon (nome de um lendário produtor britânico); em 2010, publicou a auto-biografia All My Flashbacks: The Autobiography of Lewis Gilbert Sixty Years a Film Director.

>>> Trailer original de Alfie.


>>> Obituário em The Telegraph.

"Christine" ou a morte em directo

Desde o dia 21 de Fevereiro, o filme Christine (2016), de Antonio Campos, está na programação dos canais TVCine: ficará, por certo, como um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Fevereiro), com o título 'Quando uma repórter de televisão se suicidou num programa em directo'.

Christine Chubbuck
[Rolling Stone]
Nas memórias íntimas da televisão, a história da repórter americana Christine Chubbuck constitui, por certo, um dos capítulos mais estranhos e perturbantes. Na sequência de um complexo processo de depressão, envolvendo atribulações da vida privada e alguma frustração profissional, Christine suicidou-se, em directo, com um tiro na cabeça, durante uma emissão do WXLT, um canal regional da cidade de Sarasota, no estado da Florida — foi no dia 15 de Julho de 1974, faltava pouco mais de um mês para completar 30 anos de idade.
Podemos conhecer a sua história através de Christine, notável filme de Antonio Campos, americano de ascendência brasileira, inédito no circuito comercial português, tendo passado no Lisbon & Estoril Film Festival de 2016 — está agora disponível na programação dos canais TVCine.
O menos que se pode dizer de Christine é que se trata de um objecto de cinema que evita transformar a tragédia da sua personagem central em “símbolo” do que quer que seja. Do mesmo modo, o contexto televisivo em que Christine trabalha não pode ser encarado como um retrato de “toda” a televisão: em termos históricos, a realização de Campos interessa-se pelas especificidades da conjuntura audiovisual de meados da década de 70, ao mesmo tempo que, no plano psicológico, observa as nuances mais delicadas da história pessoal de Christine.

Televisão e sexo

Em 1965, aos 21 anos de idade, Christine Chubbuck tinha concluído o curso de comunicação audiovisual na Universidade de Boston. Acumulando experiência em vários canais televisivos, participou ainda, durante o Verão de 1967, num workshop de rádio e televisão da Universidade de Nova Iorque. O WXLT abriu-lhe as portas, permitindo-lhe consolidar uma posição de repórter vocacionada para os assuntos sociais e, em particular, para os temas da infância. A qualidade das suas reportagens levou os responsáveis do canal a entregarem-lhe a apresentação do Suncoast Digest, um “talk show” matinal sobre os habitantes de Sarasota, com especial destaque para as actividades comunitárias de recuperação e reintegração de toxicodependentes.
A realização inscreve o trabalho de Christine numa dinâmica televisiva de importante valorização dos temas sociais. Mas não é, de modo algum, uma paisagem linear aquela em que esse trabalho se desenvolve. Os seus conflitos com o director do canal, Michael Nelson (interpretado pelo dramaturgo Tracy Letts), decorrem de uma tensão que, em boa verdade, persiste nos nossos dias: trata-se de saber se se opta por uma informação que visa, em última instância, a compreensão das clivagens de toda uma sociedade ou, pelo contrário, se a televisão se satisfaz com a abordagem pitoresca de alguns casos individuais.
O filme é tanto mais subtil quanto cruza essa problemática com as atribulações pessoais de Christine, sobretudo as suas tendências suicidas. Aos 26 anos, tinha tentado pôr fim à vida com uma overdose de várias drogas, estando a seguir tratamento psiquiátrico nos meses que antecederam a sua morte. Era uma situação que ela não escondia de vários colegas, sobretudo do também apresentador e principal confidente George Peter Ryan (Michael C. Hall, protagonista da série Dexter). Veio mesmo a saber-se que Christine tinha dado conta a esses colegas do desencanto com que encarava a sua vida sexual: estava à beira de fazer 30 anos e era ainda virgem.

Um mundo de ecrãs

No papel de Christine Chubbuck encontramos Rebecca Hall, actriz inglesa que começou a surgir no radar internacional quando interpretou Vicky Cristina Barcelona (2008), sob a direcção de Woody Allen. A sua composição é, de longe, a maior proeza da sua carreira, conseguindo passar para o espectador uma fundamental sensação: há um misto de sedução e resistência que nasce da sua exposição no pequeno ecrã. No limite, pode mesmo dizer-se que Christine é alguém que tenta sobreviver entre os poderes da sua imagem pública e a violência emocional dos seus dramas privados.
Antonio Campos, importa lembrar, não é um autor estranho à temática dos ecrãs, suas euforias e fantasmas. O seu Depois das Aulas (2008), centrado num estudante de liceu que vive quase só através das imagens que regista e difunde na Internet, é mesmo um dos mais impressionantes filmes que se fizeram neste século XXI sobre a contaminação da existência humana pelas componentes do mundo virtual.
Christine pode incluir-se numa longa e fascinante tradição de abordagem do universo televisivo pelo cinema americano — entre os momentos emblemáticos de tal tradição encontramos títulos fundamentais como Network (1976), de Sidney Lumet, e Quiz Show (1994), de Robert Redford, ou ainda, mais recentemente, Money Monster (2016), de Jodie Foster. Esquecido pelas salas de cinema, em Portugal e muitos outros países, Christine surge agora, ironicamente, na televisão.

segunda-feira, fevereiro 26, 2018

HBO apresenta "Fahrenheit 451"

Está de volta a fábula do mundo hiper-vigiado em que os livros são objectos interditos, metodicamente queimados à temperatura de 451° Fahrenheit.
Dito de outro modo: Fahrenheit 451, romance clássico de Ray Bradbury, foi refilmado pela HBO, mais de meio século passado sobre a maravilhosa versão de François Truffaut. No elenco encontramos, curiosamente, Keir Dullea (81 anos), o astronauta que desliga o computador Hal 9000 em 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick; os principais papéis estão entregues a Michael B. Jordan, Sofia Boutella e Michael Shannon; a realização é de Ramin Bahrani, autor do brilhante 99 Casas (2014), sobre a especulação no mercado imobiliário na sequência da crise financeira de 2008.
Com lançamento previsto para esta Primavera, o novo Fahrenheit 451 tem este trailer.

A história reescrita pela Marvel

Para além da medíocre formatação de quase todos os seus "blockbusters", a Marvel parece apostada também em simplificar abusivamente a história das ideias e das imagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Fevereiro).

A propósito da nova produção da Marvel, Black Panther, sobre um super-herói de pele negra, muito se tem falado da evolução da figuração das personagens afro-americanas. O filme tem sido mesmo celebrado como uma viragem decisiva. No YouTube, encontro várias entrevistas da equipa do filme e registo esta afirmação de Kevin Feige, presidente dos Marvel Studios: “Havia, claramente, a expectativa de um público que nunca se tinha visto representado deste modo” (ABC News, 17 de Fevereiro). As palavras de Feige não são um detalhe. Reflectem um discurso transversal — muito forte no interior do jornalismo nos EUA — que poderá resumir-se num enunciado esquemático: havia uma representação maniqueísta dos afro-americanos, agora superada pela narrativa de Black Panther.
Encaro Black Panther como um filme tão banal como os muitos que a Marvel tem produzido com super-heróis brancos. Mas não é o facto de ser “bom” ou “mau” que está em jogo. Acontece que o discurso de Feige, aliás repercutido nas declarações de muitos actores afro-americanos, acaba por reforçar um dramático fenómeno dos nossos dias. A saber: a proliferação de “informação” (no cinema e não só) favorece um bizarro apagamento da complexidade das memórias históricas.
Não precisamos de recuar a um clássico como E Tudo o Vento Levou (1939) para recordar que a história das personagens afro-americanas não pode ser reduzida a uma qualquer visão panfletária, “pró” ou “contra”. Consagrada pela Academia de Hollywood como melhor actriz secundária, Hattie McDaniel foi mesmo, graças a E Tudo o Vento Levou, a primeira pessoa afro-americana a ser nomeada para, e a vencer, um Oscar.
Lembremos, por exemplo, o papel decisivo de um filme como Shaft (1971), de Gordon Parks, com Richard Roundtree a interpretar a figura de um detective privado, tradicionalmente entregue apenas a actores brancos. Ou ainda o valor simbólico da carreira de Sidney Poitier, sobretudo a partir de Sementes de Violência (1955), de Richard Brooks, a par da emblemática filmografia de um cineasta como Spike Lee, desde Os Bons Amantes (1986). Isto sem esquecer que com Carmen Jones, protagonizado por Dorothy Dandridge, Otto Preminger assumiu o risco pioneiro de realizar um filme com um elenco totalmente negro — foi em 1954 [trailer].
Dir-se-ia que, além de dominar o mercado, a Marvel está também apostada em reescrever a história de Hollywood e, no limite, dos afro-americanos na sociedade americana. Nem mesmo os artifícios do espectáculo podem legitimar tal irresponsabilidade.

domingo, fevereiro 25, 2018

A caminho dos OSCARS
— técnicos de som
consagram "Dunkirk"

[Governor Awards]  [Gotham Awards]  [críticos de Nova Iorque]  [críticos de Los Angeles]
[American Film Institute]  [National Society of Film Critics]  [Globos de Ouro]
[National Board of Film Review]  [Critics' Choice Awards]  [NAAPC]  [associação de produtores] [associação de actores]  [N O M E A Ç Õ E S]  [associação de montadores]  [associação de cenógrafos]
[associação de realizadores]  [associação de animadores]  [USC]  [associação de argumentistas]
[associação de directores de fotografia]  [BAFTA]  [associação de designers de guarda-roupa]


A equipa coordenada pelo produtor de som Mark Weingarten arrebatou, graças ao seu trabalho em Dunkirk, o principal prémio, para melhor mistura de som de 2017, atribuído pela Cinema Audio Society. Coco e Jane foram também distinguidos pela associação dos técnicos de som — lista integral de prémios no site da CAS.

* Filme — DUNKIRK [cena com sons do ataque dos Stuka germânicos]
* Filme de animação — COCO
* Documentário — JANE

A caminho dos OSCARS
— associação de criadores de guarda-roupa
premiou Luis Sequeira

[Governor Awards]  [Gotham Awards]  [críticos de Nova Iorque]  [críticos de Los Angeles]
[American Film Institute]  [National Society of Film Critics]  [Globos de Ouro]
[National Board of Film Review]  [Critics' Choice Awards]  [NAAPC]  [associação de produtores] [associação de actores]  [N O M E A Ç Õ E S]  [associação de montadores]  [associação de cenógrafos]
[associação de realizadores]  [associação de animadores]  [USC]  [associação de argumentistas]
[associação de directores de fotografia]  [BAFTA]


Eu, Tonya, A Forma da Água e Wonder Woman foram distinguidos pela Costumes Designers Guild — o luso-descendente Luis Sequeira foi o premiado por A Forma da Água. Esta foi a 20ª edição dos prémios da associação de profissionais do guarda-roupa para cinema — lista completa de vencedores no site da CDG.

* Filme contemporâneo — Jennifer Johnson, por EU, TONYA
* Filme de época — Luis Sequeira, por A FORMA DA ÁGUA [entrevista dos BAFTA]
* Filme fantástico/ficção científica — Lindy Hemming, por WONDER WOMAN

Tonya Harding por Margot Robbie

Margot Robbie, Eu, Tonya
Na história da patinagem no gelo e, mais do que isso, nos anais do desporto, Tonya Harding ficou como protagonista de um escândalo perturbante. Em 1994, quando a sua rival Nancy Kerrigan foi atacada por um homem com ligações ao ex-marido de Tonya (de modo a impedir a sua participação nos Jogos Olímpicos de Inverno daquele ano), de imediato o seu nome surgiu associado à agressão, desencadeando um dramático processo de investigação e julgamento. O filme Eu, Tonya evoca tudo isso num registo singularmente intimista.
O intimismo nasce da elaborada teia de contrastes proposta pelo filme escrito por Steven Rogers e realizado por Craig Gillespie. Tudo se passa como se se tratasse de uma reportagem. Os actores, sem deixarem de assumir as suas personagens, vão pontuando a acção através de sucessivos depoimentos prestados directamente para a câmara, num sugestivo esquema de “falso documentário”.
Não é um modelo narrativo original — vimo-lo, por exemplo, em títulos tão complexos e fascinantes como Cenas da Vida Conjugal (1973), de Ingmar Bergman, ou Maridos e Mulheres (1992), de Woody Allen. O certo é que Gillespie sabe aplicá-lo de modo a sublinhar a pergunta que assombra tudo e todos: o que é que Tonya fez (ou não fez) que tivesse contribuído para o plano de agredir Nancy?
Pertence ao espectador descobrir a resposta do filme a tal interrogação. Em todo o caso, mesmo evitando revelar as respectivas nuances, vale a pena dizer que Eu, Tonya não é um objecto de explicações deterministas. Há mesmo duas componentes essenciais na definição da personagem da patinadora. Uma é de natureza familiar: desde a infância, Tonya vive como uma “invenção” terna e cruel da própria mãe, empenhada em transformá-la numa vedeta da patinagem e, sobretudo, numa vencedora. A outra é subtilmente social: em Nancy, Tonya vê mais do que uma adversária desportiva; ela é, afinal, o símbolo de uma sofisticação ligada a um estatuto “superior” (ou como tal celebrado pelos media) de que Tonya parece estar excluída.

A caminho dos Oscars

No actual contexto de Hollywood, Eu, Tonya reafirma um realismo intransigente e visceral, em tudo e por tudo alheio aos valores narrativos de “blockbusters” e super-heróis. Nessa perspectiva, podemos mesmo aproximá-lo do novo, e também magnífico, filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris (sobre um episódio terrorista, também inspirado em factos verídicos).
A energia de Eu, Tonya é indissociável do trabalho dos actores e, em particular, de duas actrizes: Margot Robbie, como Tonya, e Allison Janney, no papel da mãe, ambas com nomeações para os Oscars, na categoria principal e como secundária, respectivamente (o filme está ainda nomeada na categoria de montagem). Janney sempre foi uma talentosa secundária — recordemo-la, por exemplo, em Um Lugar para Viver (2009), de Sam Mendes — e, de acordo com todas as previsões, terá a sua estatueta dourada na cerimónia do dia 4 de Março.
Quanto a Robbie, não sendo favorita, tem aqui uma das mais atípicas, e também mais brilhantes, performances deste ano cinematográfico. Através de um incrível trabalho de transfiguração, ela consegue a proeza de nos revelar Tonya como um ser humano instalado numa esplendorosa contradição: por um lado, vêmo-la como expressão de uma vulgaridade (para não dizer fealdade) alheia a qualquer elegância ou espectacularidade; por outro lado, a sua entrega obsessiva às exigências da patinagem transfiguram-na em símbolo bizarro, mas genuíno, do mais utópico “Sonho Americano”.

sábado, fevereiro 24, 2018

Filme romeno vence Festival de Berlim

A 68ª edição do Festival de Cinema de Berlim consagrou o filme romeno Touch Me Not, de Adina Pintilie, com o Urso de Ouro.
O júri, presidido pelo cineasta alemão Tom Tykwer, atribuíu o prémio de melhor realização ao americano Wes Anderson, por Isle of Dogs; Anthony Bajon foi distinguido como melhor actor, em La Prière, do francês Cédric Kahn, indo o prémio de interpretação feminina para Ana Brun, em Las Herederas, do paraguaio Marcelo Martinessi — palmarés integral disponível no site da Berlinale.

>>> Fragmento de Touch Me Not + trailer de Isle of Dogs.



A IMAGEM: Erwin Olaf, 2017

ERWIN OLAF
Huai Hai
Shangai 2017

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Clint Eastwood, cineasta realista (2/2)

O novo filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris, não foi, estranhamente, mostrado à imprensa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'A implosão de Hollywood'.

[ 1 ]

Tempos estranhos na vida dos filmes. Em vários países — incluindo Portugal, França e Brasil —, o novo filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris, não foi previamente mostrado à imprensa. O carácter excepcional desta medida (nas últimas décadas, há muito poucos exemplos semelhantes) justifica que expressemos, no mínimo, uma triste perplexidade. Quanto mais não seja porque a ela se cola uma pergunta incontornável: será que a indústria de Hollywood, cada vez mais marcada pelas formatações impostas pelos filmes de super-heróis, já se dá ao luxo de menosprezar o trabalho de alguém como Clint Eastwood?
Não se trata, entenda-se, de especular sobre as “culpas” dos distribuidores daqueles países: a decisão provém da origem, isto é, dos estúdios da Warner Bros. e nem sequer reflecte qualquer princípio de “globalização” (The New York Times e alguns outros jornais americanos publicaram críticas ao filme antes da respectiva data de estreia nos EUA). Acontece que há qualquer coisa de absurdo quando um tão poderoso sistema industrial opta por não divulgar o trabalho de uma personalidade que marca o último meio século de Hollywood e que, salvo melhor opinião, continua a ser um dos seus ícones mais universais (e também mais rentáveis, vale a pena acrescentar).
Será que um episódio deste género significa que estamos perante uma indústria que já nem sequer sabe valorizar a sua fascinante diversidade interna? Nos últimos anos, algumas vozes têm chamado a atenção para o facto de Hollywood, ao privilegiar os modelos dos “blockbusters” de super-heróis, correr riscos de implosão. Entre tais vozes estão Steven Spielberg, George Lucas, Steven Soderbergh e Jodie Foster. Posso estar enganado, mas não creio que sejam jornalistas ou críticos de cinema.

quinta-feira, fevereiro 22, 2018

"Ray of Light", 20 anos

É uma das obras-primas da pop que encerra o século XX: Ray of Light, sétimo álbum de estúdio de Madonna, foi lançado a 22 de Fevereiro de 1998 — faz hoje 20 anos.
Curiosamente, essa data de lançamento não foi universal: o disco começou por surgir no Japão, ocorrendo o chamado lançamento mundial poucos dias mais tarde, a 2 de Março. Aliás, a edição japonesa inclui uma 14ª faixa, Has to Be, que não constaria na edição standard, com o seguinte alinhamento:

1. Drowned World/Substitute for Love
2. Swim
3. Ray of Light
4. Candy Perfume Girl
5. Skin
6. Nothing Really Matters
7. Sky Fits Heaven
8. Shanti/Ashtangi
9. Frozen
10. The Power of Good-Bye
11. To Have and Not to Hold
12. Little Star
13. Mer Girl

Ray of Light sucedeu-se às convulsões mediáticas e morais geradas pelo livro Sex (1992) e a um álbum, Bedtime Stories (1994), que funcionou como um interregno romanesco e introspectivo. De alguma maneira, essa dimensão intimista surgia reforçada através da dimensão confessional de várias canções — a começar por Drowned World, reflectindo as ambivalências da condição de estrela —, indissociável do nascimento da primeira filha de Madonna, Lourdes Maria, em 1996 (Little Star é a ela dedicada).
A colaboração de William Orbit na produção seria decisiva para a criação de uma ambiência electrónica & romântica, antecipando muitas sonoridades do século seguinte. Isto sem esquecer que, embora já com uma história visual riquíssima, Madonna teria com Ray of Light alguns dos seus telediscos mais notáveis, a começar, claro, pelo da canção-título, realizado por Jonas Åkerlund.

* * * * *
Em jeito de montra, aqui ficam cinco referências emblemáticas:
Has to Be (canção apenas incluída na edição japonesa);
Frozen na BBC (1998);
— teledisco de Ray of Light (real.: Jonas Åkerlund);
— teledisco de Nothing Really Matters (real.: Johan Renck);
Ray of Light no Live Earth (Wembley, Londres, 07-07-2007).










>>> Fundação Ray of Light.

A IMAGEM: Geof Kern, 2017

GEOF KERN
Neiman-Marcus / Vogue
2017

quarta-feira, fevereiro 21, 2018

Viva "Will & Grace"!

O regresso da série Will & Grace constitui um delicioso evento televisivo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Fevereiro), com o título 'Cinefilia em tom televisivo'.

O regresso da série Will & Grace (TVCine & Séries) ilustra um momento feliz de uma cultura genuinamente popular, alheia a lugares-comuns populistas. Recorde-se que Will (Eric McCormack) é um advogado de sucesso, homossexual, obcecado pela ascensão profissional, que partilha a sua existência com Grace (Debra Messing), uma decoradora de interiores que continua a procurar o homem ideal, mantendo com Will uma relação que quase parece conjugal...
Na dinâmica da série são essenciais mais duas personagens. Karen (Megan Mullally), é uma predadora sexual, pelo menos na sua imaginação, empregada de Grace sem grande vocação para... trabalhar; Jack (Sean Hayes), o melhor amigo de Will, também homossexual, é um narcisista benigno que vai alimentando o sonho de ser uma grande figura do espectáculo, enquanto os outros lhe resolvem os seus problemas financeiros...
A série estava interrompida desde a oitava temporada, difundida em 2006. Tendo regressado em Setembro de 2017 (nos EUA), conservou o essencial do seu quarteto, explorando com inteligência um quadro de relações em que se reflectem os mais diversos temas sociais, desde a militância gay até à resistência aos avanços do politicamente correcto.
Em todo o caso, Will & Grace está muito longe de um qualquer discurso “profiláctico”. Criada por David Kohan e Max Mutchnick, a série contraria mesmo o pendor moralista de alguns modelos televisivos que se dizem “sociológicos”. Por delicioso paradoxo, a sua ligação ao presente (inventariando, por exemplo, os impulsos conservadores da América de Donald Trump), decorre de um tom festivamente artificioso, enraizado numa brilhante escrita de diálogos e também na mais nobre tradição burlesca de Hollywood.
Megan Mullally, Eric McCormack, Debra Messing e Sean Hayes (na foto, da esquerda para a direita) são todos notáveis nessa arte de compor personagens de contraditória energia: por um lado, vemo-los como bonecos animados de um humor abstracto e contagiante; por outro lado, descobrimos neles, e através deles, muitos sinais de um tempo em que está na ordem do dia a discussão das identidades sexuais e, mais do que isso, a paisagem dos possíveis e impossíveis das relações humanas.
Se quisermos ser cinéfilos, podemos mesmo dizer que as duas actrizes actualizam um modelo clássico de comédia que passa por Shirley MacLaine e Judy Holliday, sendo McCormack uma variação sarcástica de Cary Grant e Hayes um hiper-talentoso herdeiro do génio de Jerry Lewis — grande televisão, admirável arte da narrativa.

>>> Trailer da nova temporada de Will & Grace.

terça-feira, fevereiro 20, 2018

A caminho dos OSCARS
— "Três Cartazes à Beira da Estrada"
domina os BAFTA

[Governor Awards]  [Gotham Awards]  [críticos de Nova Iorque]  [críticos de Los Angeles]
[American Film Institute]  [National Society of Film Critics]  [Globos de Ouro]
[National Board of Film Review]  [Critics' Choice Awards]  [NAAPC]  [associação de produtores] [associação de actores]  [N O M E A Ç Õ E S]  [associação de montadores]  [associação de cenógrafos]
[associação de realizadores]  [associação de animadores]  [USC]  [associação de argumentistas]
[associação de directores de fotografia]


Com cinco distinções — incluindo melhor filme e melhor filme britânico —, Três Cartazes à Beira da Estrada dominou os prémios BAFTA (British Academy of Film and Television Arts). Em qualquer caso, o respectivo director, Martin McDonagh, não recebeu o prémio de realização, entregue a Guillermo del Toro, por A Forma da Água. Ridley Scott foi homenageado com um prémio de carreira — lista completa de prémios no site oficial.

* Filme — TRÊS CARTAZES À BEIRA DA ESTRADA, de Martin McDonagh
* Filme britânico — TRÊS CARTAZES À BEIRA DA ESTRADA, de Martin McDonagh
* Realizador — Guillermo del Toro, por A FORMA DA ÁGUA
* Actor — Gary Oldman, A HORA MAIS NEGRA
* Actriz — Frances McDormand, TRÊS CARTAZES À BEIRA DA ESTRADA
* Actor secundário — Sam Rockwell, TRÊS CARTAZES À BEIRA DA ESTRADA
* Actriz secundária — Allison Janney, EU, TONYA
* Revelação realizador britânico — Rungano Nyoni, por I AM NOT A WITCH [trailer]

A IMAGEM: Inez & Vinoodh, 2018

INEZ & VINOODH
Yves Saint Laurent
Primavera/Verão, 2018

segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Françoise Hardy, opus 28

Com 74 anos celebrados no passado dia 17 de Janeiro, Françoise Hardy anunciou o seu 28º álbum de estúdio (o anterior, L'Amour Fou, surgiu em 2012): chama-se Personne d'Autre e estará nas lojas no dia 6 de Abril. O cartão de visita é belíssimo e intitula-se Le Large — pequena utopia em tom de balanço secreto.

Aucune histoire banale gravée dans ma mémoire
Aucun bateau pirate ne prendra le pouvoir
Aucune étoile filante me laissera dans le noir
Aucun trac, aucun...

Et demain tout ira bien, tout sera loin
Là au final quand je prendrai le large
Tout sera loin, donne moi la main
Là au final quand je prendrai le large

Aucune larme aucune viendra m'étrangler
Aucun nuage de brume dans mes yeux délavés
Aucun sable ni la dune n'arrête le sablier
Aucun quartier de lune, aucun...

Et demain tout ira bien, tout sera loin
[...]

Aucun autre décor, aucun autre que toi
Aucune clef à bord, aucune chance pour moi

Et demain tout ira bien, tout sera loin
[...]

Aucun requin, aucun air triste
Aucun regret, aucun séisme
Aucune langue de bois
Aucun chaos, aucun, aucun...

Et demain tout ira bien, tout sera loin
[...]

A caminho dos OSCARS
— directores de fotografia
dão prémio a "Blade Runner"

[Governor Awards]  [Gotham Awards]  [críticos de Nova Iorque]  [críticos de Los Angeles]
[American Film Institute]  [National Society of Film Critics]  [Globos de Ouro]
[National Board of Film Review]  [Critics' Choice Awards]  [NAAPC]  [associação de produtores] [associação de actores]  [N O M E A Ç Õ E S]  [associação de montadores]  [associação de cenógrafos]
[associação de realizadores]  [associação de animadores]  [USC]  [associação de argumentistas]


A American Society of Cinematograhers entregou os seus 32ºs prémios anuais, incluindo algumas distinções honorárias — Angelina Jolie foi, este ano, uma das personalidades homenageadas. Com Blade Runner 2049, o inglês Roger Deakins arrebatou o seu quinto prémio atribuído pela associação de directores de fotografia — lista integral de vencedores no site da ASC. Este video, apresentado na cerimónia, evoca as figuras de alguns directores de fotografia falecidos ao longo de 2017.

Kissin + Kopelman Quartet

Evgeny Kissin
* Evgeny Kissin
* Kopelman Quartet
- Gulbenkian [16-02-2018]

Convenhamos que os quartetos (ou quintetos) para piano e cordas não constituem um formato dominante no circuito dos concertos. Daí a expectativa gerada pelo regresso de Evgeny Kissin à Fundação Gulbenkian, acompanhado pelo Kopelman Quartet. Para mais com um programa sedutor, dir-se-ia empenhado em resumir um século de história dos sons musicais:

Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)
> Quarteto com Piano n.º 1, em Sol menor, K. 478

Gabriel Fauré (1845-1924)
> Quarteto com Piano n.º 1, em Dó menor, op. 15

Antonin Dvořák
(1841-1904)

> Quinteto com Piano n.º 2, em Lá maior, op. 81

Viajámos, assim, da unidade ideal da composição mozartiana para as clivagens e novas complementaridades que Dvořák impõe aos seus instrumentos, passando através da ambivalência melódica e estrutural da espantosa composição de Fauré [video aqui em baixo de uma interpretação da mesma obra, em 1998, por Marc-André Hamelin e o Leopold Trio]. O terceiro andamento de Fauré, Adagio, é um daqueles momentos em que parecemos encontrar o cruzamento exemplar de passado e futuro, de alguma maneira ajudando-nos a compreender como o século XIX parece integrar a premonição de todas as convulsões estéticas e civilizacionais que vivemos no século XX. Enfim, Kissin é, continua a ser, uma personagem exemplar desse ziguezague, cada vez mais austero, e também mais tocante, na sua arte de reinvenção das partituras.

domingo, fevereiro 18, 2018

Para além de Foucault [citação]

>>> Estamos longe do universo disciplinar que Foucault descreveu. Segundo ele, a bio-política consiste em produzir corpos dóceis em relação a normas cuja existência lhes é anterior. A governamentalidade algorítmica parece muito emancipadora em relação a este modelo, uma vez que se trata, ao invés, de produzir normas dóceis para o corpo. É, por exemplo, a "magia" do deep learning e do feed-back look, processos pelos quais a máquina é ela própria capaz de modificar os seus modelos por retroacção: se o vosso comportamento concreto não corresponde à modelização que dele se fez, isso não será considerado como um erro, mas antes como uma ocasião de reconverter a máquina de modo a afinar o sistema de perfis. Trata-se, assim, de um sistema de normas eminentemente plástico, fluido, que se cola aos comportamentos de cada indivíduo como uma segunda pele.

ANTOINETTE ROUVROY
'Da vigilância ao sistema de perfis'
entrevista de Catherine Portevin
Philosophie, número especial, 2018

Clint Eastwood, cineasta realista (1/2)

Anthony Sadler, Spencer Stone, Clint Eastwood e Alek Skarlatos
[MovieWeb]
O novo filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris, transforma figuras verídicas em actores das suas personagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'Os soldados de Clint Eastwood são actores da sua própria história'.

Vivemos num tempo de proliferação de imagens, muitas delas empenhadas em mostrar-nos o que é, e como é, o mundo à nossa volta. Em particular na televisão, somos todos os dias bombardeados pelas transmissões em directo, apostadas em construir uma visão dos acontecimentos “em tempo real”. Dito de outro modo: no audiovisual contemporâneo, directa ou indirectamente, a questão da verdade está sempre presente. Com uma pergunta obsessiva: que grau de verdade podemos, ou devemos, atribuir àquilo que nos é dado ver?
Com o seu novo filme, 15:17 Destino Paris, Clint Eastwood apresenta uma singularíssima resposta a tal pergunta. Dir-se-ia que o veterano realizador (87 anos) quis baralhar e voltar a distribuir as cartas estéticas e éticas de um jogo tão delicado quanto complexo: para dar conta da experiência verídica de três jovens soldados americanos que impediram um ataque terrorista num comboio, Eastwood escolheu os próprios soldados como intérpretes das suas personagens.
São eles Spencer Stone, Anthony Sadler e Alek Skarlatos, com 22-23 anos no Verão de 2015. Em férias na Europa, depois de um périplo por vários países, saíram de Amsterdão para Paris no dia 21 de Agosto, tomando o comboio de alta velocidade Thalys, com partida às 15h17. A certa altura, um jovem marroquino de nome Ayoub El Khazzani, depois de muitos minutos fechado numa casa de banho, irrompeu nos corredores do comboio ameaçando os passageiros com uma espingarda e uma pistola (na sua mochila transportava uma grande quantidade de munições e uma lata de petróleo).
No misto de confusão e pânico que se instalou, El Khazzani ainda feriu um passageiro, mas graças à acção de Stone, Sadler e Skarlatos, o atacante seria neutralizado. Poucos dias mais tarde, os três jovens americanos (e ainda Chris Norman, britânico que teve também um papel determinante nos acontecimentos) receberiam a Legião de Honra do estado francês das mãos do presidente François Hollande.

À flor da pele

A envolvente energia do filme está longe de se esgotar nos minutos do ataque, afinal tão breves quanto perturbantes. Aliás, a obsessão realista de 15:17 Destino Paris produz um efeito francamente fora de moda. Escusado será sublinhar que o olhar de Eastwood nada tem a ver com as convenções mil vezes repetidas das aventuras de super-heróis. Mas também não se pode dizer que o heroísmo das suas três personagens centrais seja, para ele, um tema épico.
15:17 Destino Paris não é uma epopeia, antes uma crónica marcada pelos contrastes mais extremos da condição humana. Assim, as fascinantes cenas de Stone, Sadler e Skarlatos ainda crianças relembram-nos que os respectivos perfis mentais e emocionais se enraízam em estruturas familiares específicas e modos muito particulares de educação; no caso de Stone e Skarlatos é particularmente importante o facto de serem filhos de mães solteiras e também a sua passagem por um liceu de inspiração cristã (na visão de Eastwood, os respectivos métodos educacionais não serão um modelo de atenção às subtilezas da infância e adolescência).
Mais tarde, quando os vemos a deambular por cenários europeus, não há nenhum determinismo heróico no seu comportamento; somos mesmo levados a observá-los como protótipos do cliché do turista americano, mais ou menos indiferente aos cenários que vai registando no seu telemóvel (observe-se o seu enfado perante as maravilhas de Veneza).
Quando irrompe a cena brutal do comboio, o que mais conta é esse contraste entre a condição vulgar das personagens e o carácter excepcional do seu comportamento naquele momento tão dramático. Eastwood continua a ser um retratista de um paradoxo visceralmente humano: os heróis não protagonizam uma “missão”, são apenas figuras anónimas do comboio que partiu 17 minutos depois das três da tarde.