domingo, fevereiro 25, 2018

Tonya Harding por Margot Robbie

Margot Robbie, Eu, Tonya
Na história da patinagem no gelo e, mais do que isso, nos anais do desporto, Tonya Harding ficou como protagonista de um escândalo perturbante. Em 1994, quando a sua rival Nancy Kerrigan foi atacada por um homem com ligações ao ex-marido de Tonya (de modo a impedir a sua participação nos Jogos Olímpicos de Inverno daquele ano), de imediato o seu nome surgiu associado à agressão, desencadeando um dramático processo de investigação e julgamento. O filme Eu, Tonya evoca tudo isso num registo singularmente intimista.
O intimismo nasce da elaborada teia de contrastes proposta pelo filme escrito por Steven Rogers e realizado por Craig Gillespie. Tudo se passa como se se tratasse de uma reportagem. Os actores, sem deixarem de assumir as suas personagens, vão pontuando a acção através de sucessivos depoimentos prestados directamente para a câmara, num sugestivo esquema de “falso documentário”.
Não é um modelo narrativo original — vimo-lo, por exemplo, em títulos tão complexos e fascinantes como Cenas da Vida Conjugal (1973), de Ingmar Bergman, ou Maridos e Mulheres (1992), de Woody Allen. O certo é que Gillespie sabe aplicá-lo de modo a sublinhar a pergunta que assombra tudo e todos: o que é que Tonya fez (ou não fez) que tivesse contribuído para o plano de agredir Nancy?
Pertence ao espectador descobrir a resposta do filme a tal interrogação. Em todo o caso, mesmo evitando revelar as respectivas nuances, vale a pena dizer que Eu, Tonya não é um objecto de explicações deterministas. Há mesmo duas componentes essenciais na definição da personagem da patinadora. Uma é de natureza familiar: desde a infância, Tonya vive como uma “invenção” terna e cruel da própria mãe, empenhada em transformá-la numa vedeta da patinagem e, sobretudo, numa vencedora. A outra é subtilmente social: em Nancy, Tonya vê mais do que uma adversária desportiva; ela é, afinal, o símbolo de uma sofisticação ligada a um estatuto “superior” (ou como tal celebrado pelos media) de que Tonya parece estar excluída.

A caminho dos Oscars

No actual contexto de Hollywood, Eu, Tonya reafirma um realismo intransigente e visceral, em tudo e por tudo alheio aos valores narrativos de “blockbusters” e super-heróis. Nessa perspectiva, podemos mesmo aproximá-lo do novo, e também magnífico, filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris (sobre um episódio terrorista, também inspirado em factos verídicos).
A energia de Eu, Tonya é indissociável do trabalho dos actores e, em particular, de duas actrizes: Margot Robbie, como Tonya, e Allison Janney, no papel da mãe, ambas com nomeações para os Oscars, na categoria principal e como secundária, respectivamente (o filme está ainda nomeada na categoria de montagem). Janney sempre foi uma talentosa secundária — recordemo-la, por exemplo, em Um Lugar para Viver (2009), de Sam Mendes — e, de acordo com todas as previsões, terá a sua estatueta dourada na cerimónia do dia 4 de Março.
Quanto a Robbie, não sendo favorita, tem aqui uma das mais atípicas, e também mais brilhantes, performances deste ano cinematográfico. Através de um incrível trabalho de transfiguração, ela consegue a proeza de nos revelar Tonya como um ser humano instalado numa esplendorosa contradição: por um lado, vêmo-la como expressão de uma vulgaridade (para não dizer fealdade) alheia a qualquer elegância ou espectacularidade; por outro lado, a sua entrega obsessiva às exigências da patinagem transfiguram-na em símbolo bizarro, mas genuíno, do mais utópico “Sonho Americano”.