quinta-feira, novembro 30, 2017

Zé Pedro (1956 - 2017)

[FOTO: Sapo]
Fundador e guitarrista da banda Xutos & Pontapés, é um nome central em quatro décadas de história do rock português: Zé Pedro faleceu no dia 30 de Novembro — contava 61 anos.
Diagnosticado, em 2001, com hepatite C, surgiu uma última vez em palco, no dia 4 de Novembro, em concerto no Coliseu dos Recreios [JN]. De seu nome completo José Pedro Amaro dos Santos Reis, rapidamente se tornou um ícone dos Xutos & Pontapés e, mais do que isso, do rock produzido em Portugal. Experimentou também a rádio, como DJ em programas da Antena 3 e da Radar.
A banda editou o seu primeiro álbum, 78/82, em 1982, logo aí gerando temas tão emblemáticos como Sémen ou Quero Mais [audio 1]. Cerco (1985) e Circo de Feras (1987) iriam consolidar o seu lugar emblemático, transgeracional, através de canções que adquiriram estatuto de hinos como Homem do Leme [audio 2], do primeiro, ou Não Sou o Único, do segundo; em 1997, editaram o álbum Tentação, banda sonora do filme homónimo de Joaquim Leitão. Não Sou o Único seria também o título do livro biográfico escrito por Helena Reis, sua irmã. O seu contributo para a música e todo o universo criativo dos Xutos & Pontapés é, em última instância, indissociável da inconfundível energia da banda nas performances ao vivo [video: Para Ti Maria, Pavilhão Atlântico].






>>> Obituário no Blitz.
>>> Entrevista com Ana Sousa Dias no Diário de Notícias (2016).

quarta-feira, novembro 29, 2017

A caminho dos OSCARS
— Gotham Awards consagram
"Call Me By Your Name"

[Governor Awards]

Na temporada dos prémios até aos Oscars da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (cuja 90ª cerimónia está marcada para 4 Março), os Gotham Awards, atribuídos pelo IFP (Independent Filmmaker Project) são normalmente encarados como a abertura oficiosa. Atribuídos no dia 27 de Novembro, eis os principais premiados:

* Filme — CALL ME BY YOUR NAME, de Luca Guadagnino
* Actor — James Franco, THE DISASTER ARTIST
* Actriz — Saorise Ronan, LADY BIRD
* Realizador/revelação — Jordan Peele, GET OUT
* Documentário — STRONG ISLAND, de Yance Ford [trailer]

>>> Notícia e lista completa de vencedores em IndieWire.

segunda-feira, novembro 27, 2017

OK Go em papel

Dos OK Go, de Chicago, espera-se, não exactamente um novo álbum, mas um novo teledisco... E eles continuam a criar imagens surpreendentes para as canções de Hungry Ghosts (2014). Agora, um ano depois de The One Moment, é a vez da canção Obsession surgir encenada numa colorida vertigem de papel (devidamente recuperado para reciclagem, garantem as notas de produção) — a ligeireza pop relançada em tom obsessivamente teatral.

David Greilsammer — um piano na NPR

Nascido em 1977, David Greilsammer é um pianista israelita que mantém uma especial relação com o universo do italiano Domenico Scarlatti (1685-1757) e essa zona de fronteiras instáveis em que o Barroco dá lugar ao Clássico. Num gesto de salutar versatilidade, surgiu na rubrica 'Tiny Desk Concert', da NPR, num espaço mais habituado a receber artistas do pop rock. Além de Scarlatti, a sua performance expande-se até às convulsões de onde nasceu o século XX, musical e não só, com peças do francês Erik Satie (1866-1925) e do checo Leoš Janáček (1854-1928) — 13 mágicos minutos de rádio, aqui com imagem.

sábado, novembro 25, 2017

"Encontros Imediatos" — 40 anos (4/4)

François Truffaut
No dia 15 de Novembro, assinalaram-se 40 anos sobre a data da primeira exibição pública, nos EUA, de Encontros Imediatos do Terceiro Grau — este texto, integrando um dossier do Diário de Notícias publicado nessa data, foi publicado com o título 'Encontro com Truffaut'.

[ 1 ]  [ 2 ]  [ 3 ]

O cinema está de cheio de histórias, muitas vezes fascinantes, por vezes desastrosas, que nos ensinam os paradoxos da arte de escolher actores — afinal de contas, em particular em Hollywood, o trabalho de casting será um dos mais discretos, mas também mais essenciais na preparação de qualquer filme. Encontros Imediatos do Terceiro Grau envolve uma dessas histórias, com o seu quê de poético: a escolha do cineasta François Truffaut (1932-1984) para interpretar o papel de Claude Lacombe, o cientista francês que desempenha um papel essencial no “diálogo” com os extra-terrestres, em particular na transmissão das cinco notas de música a que eles correspondem com contagiante entusiasmo.
Segundo as notícias da época, Spielberg chegou a avaliar a hipótese de utilizar um actor francês com reconhecimento internacional: entre os nomes considerados incluíam-se Gérard Depardieu, Philippe Noiret e Jean-Louis Trintignant. O certo é que alguma empatia cinéfila terá sido decisiva na escolha de Truffaut que, além do mais, com a sua pose austera e as singularidades da sua pronúncia inglesa, desempenha lindamente o papel de Lacombe.
Afinal de contas, ele estava longe de ser um desconhecido nos bastidores da produção americana. Desde logo, porque já tinha obtido três nomeações para os Oscars: duas na categoria de melhor argumento original, por Os 400 Golpes (1959) e A Noite Americana (1973); uma para melhor realizador, também com A Noite Americana. Convém não esquecer ainda que, para além do seu papel central na Nova Vaga francesa, Truffaut se tornara uma personalidade conhecida e reconhecida no mundo cinéfilo através do seu livro O Cinema segundo Hitchcock (cuja primeira edição surgira em 1966). Integrá-lo como actor terá sido outro empolgante encontro imediato.

François Truffaut e Alfred Hitchcock
fotografados por Philippe Halsman, em 1962, durante as sessões
gravadas para o livro O Cinema segundo Hitchcok

Pedro Rolo Duarte (1964 - 2017)

[FOTO: Sapo24]
Profissional multifacetado, na imprensa, rádio e televisão, é uma figura central na história do jornalismo português das últimas três décadas: Pedro Rolo Duarte faleceu no dia 24 de Novembro, vítima de cancro — contava 53 anos.
Foi aos 17 anos que a sua escrita começou a ser publicada, no suplemento juvenil do Correio da Manhã. Em 1984, estreou-se na Rádio Renascença com o programa diário, em directo, 'Sessão da Meia-Noite'. Em televisão, a sua presença ficou ligada a programas como 'Tempos Modernos' (RTP1, 1988-89), 'VivaMúsica' (RTP1, 1985-87) ou 'Falatório' (RTP2, 1996-97), este um frente a frente com personalidades de todas as áreas, valorizando sempre a dimensão cultural dos respectivos discursos. Na rádio, após uma longa carreira, com programas como 'A Cidade Branca' (Rádio Comercial, 1989-1990) ou 'À Conversa' (Correio da Manhã Rádio, 1991-1992) foi, até recentemente, presença regular em 'Hotel Babilónia' (Antena 1), em co-autoria com João Gobern.
Ainda nos jornais, Pedro Rolo Duarte deixou marcas especialmente fortes no Diário de Notícias, tendo integrado a respectiva direcção (2004-2005) — aí criou e dirigiu o DNA (1996-2006), suplemento aberto a todos os temas e personalidades com alguma implicação cultural, de alguma maneira retomando o espírito do extinto jornal Se7e, em que ocupou também o cargo de director-adjunto (1989-1990). Entre outras publicações, escreveu ainda no jornal O Independente (com o cargo de editor-adjunto em 1989) e na revista Visão (editor geral, 1992-1995); fundou e editou a revista de fim de semana do jornal i (2009-2010).
Publicou quatro livros: Noites em Branco, (Oficina do Livro, 1999), Sozinho em Casa (Oficina do Livro, 2002), SOS-SMS, (Oficina do Livro, 2003, em co-autoria com Ana Mesquita) e Fumo (Oficina do Livro, 2007). Era autor do blog Pedro Rolo Duarte.

>>> Programa 'Falatório' (RTP2, 1997), com Maria José Nogueira Pinto.


>>> Obituário no Diário de Notícias.
>>> 'Hotel Babilónia', na Antena 1.
>>> Resposta ao 'Questionário de Proust' [Anabela Mota Ribeiro].

"Os indignados do Facebook" [citação]

>>> (...) Já se fazem jantares e outros eventos no Panteão há que tempos, mas os indignados do Facebook só descobriram agora, tal como só descobriram com anos de atraso que, uma vez, José Cid tinha feito uma piada com transmontanos desdentados num programa televisivo. (...)

PORTUGALEX
24 Nov. 2017

sexta-feira, novembro 24, 2017

O cinema e a sua escrita

A imaginação cinéfila em versão canadiana: o Cinéma du Parc é uma sala de Montreal que se distingue, não apenas por ser um lugar que confere especial atenção aos clássicos, mas também pela originalidade das suas promoções. Eis um cartaz que combina o tipo de letra de Blade Runner (1982) com a frase emblemática de Judy Garland em O Feiticeiro de Oz (1939) — memórias aqui em baixo.

"Encontros Imediatos" — 40 anos (3/4)

No dia 15 de Novembro, assinalaram-se 40 anos sobre a data da primeira exibição pública, nos EUA, de Encontros Imediatos do Terceiro Grau — este texto, integrando um dossier do Diário de Notícias publicado nessa data, foi publicado com o título 'Quando Woody Allen coexistiu com Travolta'.

[ 1 ]  [ 2 ]

É bem verdade que 1977 ficou como um ano charneira na evolução da produção cinematográfica americana. Para além dos filmes “bons” ou “maus” que foram feitos, importa sublinhar o facto de as suas memórias envolverem uma espantosa variedade de produção (que nem sempre encontramos em tempos mais recentes).
1977 é o ano de objectos de grande espectáculo como Encontros Imediatos do Terceiro Grau, A Guerra das Estrelas ou Uma Ponte Longe Demais, filme de guerra co-produzido com a Grã-Bretanha, realizado por Richard Attenborough. Mas é também a época da ironia romântica de Annie Hall, de Woody Allen, ou desse requiem pela tradição do género musical que é New York, New York, de Martin Scorsese.
Em 1975, o sucesso de Tubarão, de Steven Spielberg, tinha dado origem à idade dos “blockbusters” (que, convém lembrar, se prolonga no presente). Dito de outro modo: os grandes estúdios da indústria iriam investir cada vez mais em produtos de rápida rentabilização, mais ou menos ligados a modelos fantásticos e de aventura.
Os efeitos de tal transformação ainda não seriam muito claros, até porque a paisagem criativa envolvia os mais sedutores contrastes, integrando ainda alguns nomes incontornáveis do classicismo de Hollywood. Foi em 1977, por exemplo, que Fred Zinnemann dirigiu Julia, com Jane Fonda e Vanessa Redgrave. Como contraponto, encontrávamos David Lynch a estrear-se na realização, com Eraserhead. Isto sem esquecer que um dos fenómenos de popularidade do ano seria um jovem praticamente desconhecido, de seu nome John Travolta: ao protagonizar Febre de Sábado à Noite, de John Badham, Travolta transformava-se numa estrela planetária, assumindo uma personagem enraizada, não nas novas aventuras mais ou menos inter-galácticas, mas ainda numa certa tradição de realismo social.
Foi também o ano em que se estrearam intérpretes como Meryl Streep (Julia), Sigourney Weaver (Annie Hall) ou Mel Gibson (Summer City, produção australiana). No dia de Natal de 1977, morreu Charlie Chaplin.

quinta-feira, novembro 23, 2017

Meryl Streep & Anna Wintour

Eis um perverso e divertido jogo de espelhos — sobretudo porque as protagonistas, em evidente cumplicidade de mise en scène, resistem a explorar qualquer ironia fácil... Meryl Streep encontrou-se com Anna Wintour, a editora da Vogue que, como é sabido, terá servido de inspiração para a personagem que a actriz interpretou em O Diabo Veste Prada (2006). A conversa surge a propósito da edição de Dezembro da revista, com Meryl Streep na capa, fotografada por Annie Leibovitz. Tema primeiro: a figura de Katharine Graham (1917-2001), editora de The Washington Post, interpretada por Meryl Streep no novo filme de Steven Spielberg, The Post; em foco também as convulsões desencadeadas no interior de Hollywood pelas revelações em torno de Harvey Weinstein — um bom diálogo de 5 minutos.

quarta-feira, novembro 22, 2017

Morrissey em Manchester

* DESCOBRIR MORRISSEY, de Mark Gill
[DN, 16-11-17]

O título português preocupa-se em identificar Morrissey, fundador de The Smiths. Na verdade, este é um filme sobre Steven Patrick Morrissey antes da consolidação da aliança criativa com Johnny Marr e da formação da banda — o título de trabalho foi Steven, tendo sido lançado como England Is Mine (de um verso escrito por Morrissey: England is mine, it owes me a living). Eis um caso de exemplar sobriedade biográfica, evitando qualquer determinismo “artístico”, antes retratando Morrissey como um jovem à deriva na cena musical de Manchester, numa solidão assombrada pelo fascínio da escrita poética. O tom directo e realista da realização de Mark Gill encontra o adequado complemento nos actores, sendo inevitável destacar, no papel de Morrissey, o magnífico Jack Lowden (vimo-lo, por exemplo, em Dunkirk, de Christopher Nolan).

Nova Iorque — um filme e duas canções

[DN, 16-11-17]

Este é um caso em que a preservação do título original não é um preciosismo. Trata-se, de facto, de evocar a canção homónima de Simon & Garfunkel [audio], essencial na teia romanesca do filme, tal como Visions of Johanna, de Bob Dylan [video]. Estamos perante uma boa surpresa: um filme que parte de uma peripécia mais ou menos “policial” — um jovem que descobre que o pai tem uma amante — para elaborar uma teia de acidentes e incidentes afectivos através da qual todas as personagens vão entrar num perturbante processo de revelação.
Marc Webb sabe manter o filme num tom de suave intimismo, valorizando a especificidade dos cenários nova-iorquinos, contando com um belo elenco em que encontramos o jovem Callum Turner (vimo-lo em Pela Rainha, de John Boorman), Kate Beckinsale, Pierce Brosnan, Cynthia Nixon e Jeff Bridges.



terça-feira, novembro 21, 2017

Pink — traumas em Technicolor

Beautiful Trauma, tema-título do sétimo álbum de Pink, é uma canção genuinamente pop, combinando a celebração da felicidade conjugal com alusões ao consumo de substâncias não muito recomendáveis: um cocktail de utopia e sarcasmo servido por um teledisco, realizado por Nick Florez e RJ Durell, que funciona como uma perversa celebração dos melodramas musicais dos anos 50 e, muito em particular, do seu exuberante Technicolor — no papel do marido, Channing Tatum relembra-nos os seus dotes de dançarino.

O sexo segundo Hollywood

Howard Hughes, aliás, Warren Beatty
Assim vai o mundo do cinema: o mais recente e prodigioso filme de Warren Beatty, Rules Don't Apply, não chegou às salas de cinema portuguesas... — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Novembro).

Warren Beatty realizou um dos filmes mais extraordinários de 2017: chama-se Rules Don’t Apply e coloca em cena a figura verídica do bilionário Howard Hughes (1905-1976), interpretado pelo próprio Beatty. O essencial tem a ver com o romance entre uma candidata a actriz, Marla (Lily Collins), e um dos motoristas de Hughes, Frank (Alden Ehrenreich). Em várias entrevistas, o actor/realizador foi claro na caracterização do seu trabalho: “Não se trata de uma biografia de Howard Hughes — é antes um filme envolvido com aquilo que eu chamaria as consequências cómicas, por vezes tristes, do puritanismo sexual da América no final dos anos 50, princípios dos anos 60.”
Em boa verdade, quase ninguém deu atenção ao propósito de Beatty. Estreado sem qualquer pompa, Rules Don’t Apply foi um desastre comercial nos EUA, sendo de imediato “castigado” com a supressão do seu lançamento em quase todo o mundo, surgindo nas salas de apenas seis países (três na Europa: Espanha, Itália e Reino Unido). Entre nós, pelo menos, está a passar no canal TV Cine & Séries, com o título Excepção à Regra.
O caso envolve uma lição exemplar: filmar a sexualidade para além dos padrões dominantes num determinado momento histórico envolve um preço elevado, nem que seja a marginalização dos circuitos de distribuição/exibição. E, no entanto, encontramos na produção de Hollywood muitas e fascinantes abordagens do sexo, seus medos e fantasmas. Para nos ficarmos por apenas alguns exemplos, lembremos como a sexualidade se expõe nas tensões indivíduo/sociedade em filmes admiráveis como Um Lugar ao Sol (George Stevens, 1951), A Última Sessão (Peter Bogdanovich, 1971), Sexo, Mentiras e Vídeo (Steven Soderbergh, 1989), Estrada Perdida (David Lynch, 1997) ou Fur – Um Retrato Imaginário de Diane Arbus (Steven Shainberg, 2006).
Com uma inteligência plena de ironia, Beatty retoma essa herança, expondo Hughes, lendário produtor de cinema e industrial de aviação, como rei e peão, patrão e escravo de um xadrez sexual dominado pelos discursos masculinos. E não é das menores maravilhas de Rules Don’t Apply o modo como é encenada a história de Marla, protagonizando uma saga pessoal de conquista do seu próprio discurso, em paralelo com a tocante decadência física de Hughes, assombrado pela dependência de drogas. Para Beatty, enfim, tratava-se de evocar a época em que ele próprio chegou a Hollywood. Tanto pior se o nosso tempo não quer lidar com o seu filme — o futuro tornará claro o génio criativo de Rules Don’t Apply.

Eminem — 3 canções no SNL

Quando chega o novo álbum de Eminem? Ainda não se sabe — mesmo o título já divulgado, Revival, permanece uma hipótese. O certo é que uma canção já é conhecida: Walk on Water, com a colaboração de Beyoncé. O tema reapareceu numa passagem pelo Saturday Night Live (NBC), agora na companhia de Skylar Grey, que também acompanhou Eminem em Stan e Love the Way You Lie (cujos originais contam com Dido e Rihanna, respectivamente) — uma bela trilogia de um homem a reorganizar memórias, reflectindo sobre os caminhos incertos da (sua) própria fama.

segunda-feira, novembro 20, 2017

"Liga da Justiça": mais do mesmo... (2/2)

Na guerra dos super-heróis, Liga da Justiça é o novo episódio: os milhões de dólares acumulam-se e as ideias escasseiam — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Novembro), com o título 'Batman, Super-Homem & Cª. voltam a salvar o planeta Terra'.

[ 1 ]

Na verdade, a guerra que os super-heróis estão a travar não é do mesmo teor daquelas que os fãs, entusiastas ou desiludidos, vão consumindo. As suas batalhas são financeiras — nos postos de comando estão os exércitos dos gestores da produção e especialistas do marketing. Dito de outro modo: Hollywood tornou-se o cenário de um confronto bélico entre os filmes da Marvel e da DC Comics. Liga de Justiça, com chancela da DC Comics, é apenas o mais recente capítulo desse conflito de muitos milhões de dólares.
Frente a frente estão o Marvel Cinematic Universe (MCU) e o DC Extended Universe (DCEU), precisamente os dois sistemas que gerem o património dos mais conhecidos heróis da banda desenhada. Digamos, para simplificar, que a Marvel vai na linha da frente. Desde Homem de Ferro (2008) até ao recente Thor: Ragnarok, passando pelos vários títulos com os Vingadores, o MCU tem-se distinguido por uma presença regular e agressiva nas salas de todo o mundo, mantendo ligações com diversos estúdios, com destaque para a Disney (consolidando, aliás, um novo universo de produção/distribuição, já que, em 2009, a Walt Disney Company adquiriu a Marvel Entertainment).
A DC Comics inaugurou a sua actual estratégia com Homem de Aço (2013), dirigido também por Snyder, rentabilizando a popularidade daquele que é o seu herói mais emblemático: Super-Homem. O impacto do filme não se repetiu em Batman v. Super-Homem: O Despertar da Justiça (2016), de novo com assinatura de Snyder. Em qualquer caso, sempre em ligação com a Warner Bros., o DCEU teve já este ano um dos seus sucessos mais significativos, Wonder Woman, apontado por vários analistas americanos da indústria como um momento inovador, capaz de fazer evoluir a dinâmica global das aventuras de super-heróis.
Não admira que o novo Liga da Justiça tenha sido descrito por alguns daqueles analistas (veja-se, por exemplo, a revista Forbes) como um teste importante: conseguirá a aliança Warner/DCEU relançar e “modernizar” a sua colecção de heróis? Na visão dos mais cépticos, a questão coloca-se de forma bem diferente: estaremos a assistir ao fim de Hollywood como indústria de... cinema, dando lugar a uma rotina de super-produções em que apenas cabem as derivações da BD e dos videojogos?
Tendo em conta o riquíssimo património acumulado por Hollywood ao longo de mais de cem anos, a pergunta gera outra: a concorrência Marvel/DC Comics vai criar uma paisagem de “franchises” sem qualquer relação com os valores artísticos e comerciais que, no começo do século XX, geraram a “fábrica de sonhos” da cidade de Los Angeles? Para já, a única consolação é que a Terra foi salva por Super-Homem e seus companheiros...

"Encontros Imediatos" — 40 anos (2/4)

Steven Spielberg
No dia 15 de Novembro, assinalaram-se 40 anos sobre a data da primeira exibição pública, nos EUA, de Encontros Imediatos do Terceiro Grau — este texto, integrando um dossier do Diário de Notícias publicado nessa data, foi publicado com o título 'Um Oscar ganho com oito nomeações'.

[ 1 ]

Manda a tradição que se diga que os filmes que, com a passagem do tempo, encontram um lugar central no imaginário cinéfilo nem sempre têm um reconhecimento significativo nos prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Assim aconteceu com Encontros Imediatos do Terceiro Grau. Aliás, o filme conseguiu um importante número de nomeações (oito), mas sem ser candidato ao Oscar de melhor filme do ano (que seria atribuído a Annie Hall, valendo também a Woody Allen o prémio de realização).
Steven Spielberg obteve, aqui, a primeira nomeação para melhor realizador: o seu primeiro Oscar nessa categoria seria atribuído por A Lista de Schindler (1993), o segundo por O Resgate do Soldado Ryan (1998). Encontros Imediatos do Terceiro Grau acabaria por receber uma única estatueta dourada, na categoria de melhor fotografia, para Vilmos Zsigmond.
Vilmos Zsigmond
Muitas vezes descartada como uma categoria “técnica” (por oposição aos domínios “artísticos”, por exemplo no domínio da representação), a fotografia estava longe de ser, neste caso, uma matéria secundária. Aliás, em Hollywood, Zsigmond era já reconhecido como um dos mestres da luz e da cor. Nascido na Hungria, em 1930 (faleceu em 2016), o seu nome, tal como o de Laszlo Kovacs, é indissociável dos documentários que, em 1956, registaram as convulsões estudantis e sociais contra o domínio da URSS.
Especialmente talentoso no tratamento das fontes de luz natural, Zsigmond assinara já alguns admiráveis trabalhos de direcção fotográfica no cinema americano, com destaque para A Noite Fez-se para Amar (Robert Altman, 1971), Fim-de-semana Alucinante (John Boorman, 1972) e Obsessão (Brian De Palma, 1976). Um ano mais tarde, voltaria a ser nomeado graças a O Caçador (Michael Cimino, 1978), mas Encontros Imediatos do Terceiro Grau ficou como o seu único Oscar.
Para a história da Academia, 1977 é também o ano de um insólito recorde negativo: A Grande Decisão, drama romântico de Herbert Ross, teve onze nomeações, não obtendo qualquer distinção. Curiosamente, alguns anos mais tarde, a “proeza” seria repetida pelo próprio Spielberg: A Cor Púrpura (1985), adaptação do romance de Alice Walker sobre a existência dramática de uma mulher negra no começo do século XX, foi também nomeado em onze categorias, sem receber qualquer prémio.

domingo, novembro 19, 2017

Malcolm Young (1953 - 2017)

Foi um dos fundadores dos AC/DC: o guitarrista Malcolm Young faleceu no dia 18 de Novembro em Elizabeth Bay, Sydney, Australia — contava 64 anos.
Com o seu irmão Angus Young, tal como ele nascido em Glasgow, Escócia, Malcolm criou a banda australiana AC/DC, em 1973, concretizando uma peculiar associação de rock, blues e heavy metal. Desde o primeiro álbum, High Voltage (1975), o seu som, ao mesmo tempo vibrante e ritualizado, conferiu-lhes uma enérgica imagem de marca, em particular nas performances ao vivo. Apesar de diversas alterações na formação do grupo, os dois irmãos mantiveram-se como as suas personalidades emblemáticas, até ao álbum Black Ice (2008). Considerado um dos mais brilhantes músicos de guitarra rítmica da sua geração, Malcolm afastou-se dos AC/DC em 2014 para ser tratado da demência que o atingiu — já não participou no álbum Rock or Bust (2014), tendo sido substituído pelo seu sobrinho Stevie Young.

>>> Thunderstruck, single do álbum The Razors Edge (1990), dos AC/DC — vocalista: Brian Johnson.


>>> Obituário na Rolling Stone.

FNAC: Star Wars & etc. [balanço]

A estreia próxima de um novo título da saga Star Wars serviu de pretexto para mais uma edição do nosso Magazine, na FNAC do Chiado. Em jeito de muito breve balanço, aqui ficam imagens de três dos títulos evocados, ilustrando marcas específicas de épocas bem diferentes. São eles:
Metropolis (1927), de Fritz Lang;
O Dia em que a Terra Parou (1951), de Robert Wise;
Debaixo da Pele (2013), de Jonathan Glazer.
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* O próximo SOUND + VISION MAGAZINE terá como tema:
Twin Peaks & David Lynch
(FNAC, 16 Dez., 18h30)
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Charlotte Gainsbourg, opus 5

O apelido pesa na démarche de Charlotte? Claro que sim. Mas não de acordo com a noção, afinal simplista, de que "filho(a) de peixe sabe nadar". A filha de Serge Gainsbourg e Jane Birkin soube construir um edifício musical, por certo não estranho ao misto de versatilidade e auto-ironia da respectiva herança, mas preservando sempre a singularidade de uma voz (no sentido vocal, mas também simbólico) que não abdica da ligeireza contraditória da pop.
Já conhecíamos a canção-título de Rest, quinto álbum de Charlotte Gainsbourg. O seu teledisco era, aliás, um sedutor jogo de espelhos, oscilando entre a contemplação e a irrisão que a dimensão humana pode conter. Algo de semelhante se poderá dizer a propósito desta encenação de Ring-a-ring o' roses, canção em ziguezague entre francês e inglês, evocando a verdade perdida de um amor original, em contraponto com o ritmo peculiar de uma canção infantil [nursery rhyme] — tão perto do medo da morte, tão simples como o instante de uma carícia.

Premier appel
Originel
Premier baiser
Purement maternelle
Première foulée
Effort enragé
Première ivresse
Rêve de déesse

Ring-a-ring o' roses
Pocketful of posies
We all fall down
Round and round in circle
Waiting for a miracle
Kiss the crowd
Ring-a-ring o' roses
Pocketful of posies
We all fall down
Round and round in circle
Waiting for a miracle
Kiss the crowd

Premier amour
Je jure solennel
Premiers ébats
Va au septième ciel
Premier chagrin,
Premier coup de poing
Première affaire
Premier salaire

Ring-a-ring o' roses
[...]

Premier enfant
Monstre bruyant
Premier cheveu blanc
Crâne le temps
Premier pépin
Début de la fin
Dernier soupir
Qu'il soit de plaisir

Ring-a-ring o' roses
[...]

sábado, novembro 18, 2017

A IMAGEM: Philip Jones Griffiths, 1961

PHILIP JONES GRIFFITHS
Inglaterra, 1961

Star Wars & etc.
— SOUND + VISION Magazine, FNAC [hoje]

O novo Star Wars: Os Últimos Jedi chega a 14 de Dezembro. É um bom pretexto para, antes da estreia, reorganizarmos as memórias, não apenas da saga criada por George Lucas, mas também da grande tradição cinematográfica (e não só) da ficção científica — será o tema do próximo SOUND + VISION Magazine, na FNAC.

* FNAC: Chiado, hoje, 18 Novembro (18h30)

"Liga da Justiça": mais do mesmo... (1/2)

Na guerra dos super-heróis, Liga da Justiça é o novo episódio: os milhões de dólares acumulam-se e as ideias escasseiam — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Novembro), com o título 'Batman, Super-Homem & Cª. voltam a salvar o planeta Terra'.

O planeta dos super-heróis vive angustiado desde que, em 2016, em Batman v. Super-Homem: O Despertar da Justiça, assistimos à morte de Super-Homem... Ou talvez não... Em qualquer caso, o esclarecimento de tal dúvida seria um dos pontos enigmáticos de Liga da Justiça, filme de Zack Snyder ruidosamente promovido como uma celebração dos principais heróis da DC Comics, incluindo Batman e Wonder Woman. Seria, de facto... Acontece que, desde a divulgação do elenco até ao trailer do filme, passando pelas fotos promocionais, sabíamos do regresso de Henry Cavill como intérprete do lendário sobrevivente do planeta Krypton.
Qual é, então, a surpresa? Pouca ou nenhuma, infelizmente. Este modelo de filmes entrou numa lógica de sequelas repetidas e repetitivas, muito distantes da energia criativa do começo da sua “idade moderna”, iniciada com Batman (1989) e Batman Regressa (1992), ambos de Tim Burton.
Estamos, afinal, perante os efeitos mais grosseiros do conceito corrente de “franchise”, alicerçado em orçamentos ditirâmbicos (Liga da Justiça custou 300 milhões de dólares) cujos dramas de rentabilização ameaçam toda a estrutura de Hollywood. Com um detalhe que importa sublinhar: quem começou por chamar a atenção para o risco de “implosão” da indústria não foi nenhum crítico, antes dois cineastas não propriamente desconhecidos — Steven Spielberg e George Lucas —, num debate realizado no dia 12 de Junho de 2013 na Escola de Artes Cinematográficas da Universidade da Califórnia do Sul.
O mais desconcertante é a perda do gosto mais clássico de contar histórias. Liga da Justiça deixa-se resumir pela mais escassa sinopse. A saber: um exército de terríveis alienígenas, comandado pelo implacável Steppenwolf (Ciáran Hinds), prepara-se para conduzir o planeta Terra ao apocalipse... Enfim, não será preciso especular muito para adivinhar o que farão os heróis. O certo é que tudo isso se resolve com a previsível destruição de um sem número de cenários digitais, aqui e ali “sustentado” por embaraçosos diálogos, capazes de transformar as situações mais trágicas em momentos involuntariamente anedóticos. Isto sem esquecer o subaproveitamento de intérpretes de invulgar talento, com destaque para Amy Adams, claramente à deriva no papel de Lois Lane, eterna “noiva” de Clark Kent.

[continua]

"Encontros Imediatos" — 40 anos (1/4)

No dia 15 de Novembro, assinalaram-se 40 anos sobre a data da primeira exibição pública, nos EUA, de Encontros Imediatos do Terceiro Grau — este texto, integrando um dossier do Diário de Notícias publicado nessa data, foi publicado com o título 'Quando os extra-terrestres vieram visitar Spielberg'.

Quando percorremos a história de Hollywood, há datas que sinalizam e condensam algumas transformações radicais. Por exemplo, 1927, com O Cantor de Jazz, primeiro fenómeno do cinema sonoro; 1939, com E Tudo o Vento Levou, síntese admirável da epopeia literária e do Technicolor; 1969, com Easy Rider, símbolo da “contra-cultura” dos anos 60 e também dos valores da produção independente. Chegamos a 1977 e tudo parece apontar para o fenómeno Star Wars (que, na altura, entre nós, ainda tinha direito à tradução A Guerra das Estrelas): foi a 25 de Maio que se estreou o primeiro título da saga de George Lucas. Mas importa reorganizar os nossos arquivos cinéfilos e recordar também que no dia 15 de Novembro — faz hoje 40 anos — Nova Iorque assistia à primeira exibição pública de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, de Steven Spielberg.
Nunca foi segredo o facto de a história dos extra-terrestres que visitam o planeta Terra ter as suas raízes em memórias remotas de Spielberg. No documentário The Making of Close Encounters of the Third Kind, produzido em 1997, o cineasta cita mesmo como primordial inspiração o facto de, ainda criança, ter assistido com o pai, em New Jersey, a um desses fenómenos naturais normalmente identificado como “chuva de meteoros”. No filme, a contemplação da imensidão do céu envolve mesmo um misto de solidão e expectativa: daquele universo sem fim algo vai aparecer... Ou como dizia a frase promocional do emblemático cartaz de lançamento do filme: “We are not alone” [“Não estamos sós”].


Com o passar dos anos, foi-se tornando cada vez mais evidente que este é mesmo um dos filmes mais pessoais de Spielberg. Nele encontramos a depurada expressão de um tema visceral do seu universo: a disponibilidade infantil para contemplar o mundo, mesmo nos seus contrastes mais assustadores, como uma promessa de encantamento. A célebre imagem do pequeno Barry (Cary Guffey), admirando as luzes “ameaçadoras” que se manifestam à porta de sua casa, resume a ambiguidade da fábula: os extra-terrestres constituem a mais estranha das visitas, mas é o próprio Barry que, alheado do medo dos adultos, os convoca.
Daí que seja discutível a inscrição automática de Encontros Imediatos do Terceiro Grau na vaga de ficção científica que, para o melhor e para o pior, tinha começado a contaminar os instrumentos técnicos e as opções artísticas do cinema americano. Aliás, em 1982, com E.T., o Extra-Terrestre, Spielberg encenaria uma história também de um “encontro imediato”, tratando o inesquecível E.T. como um irónico duplo das personagens infantis.

Cenários naturais

O filme constituiu um invulgar desafio de produção, contando com um sólido orçamento de 20 milhões de dólares, valor, para a época, francamente acima da média. Mais do que isso: o estúdio produtor, Columbia, deu total liberdade criativa a Spielberg, já que, em 1975, ele tinha passado para a linha da frente da indústria graças ao fenomenal sucesso de Tubarão, rodado com apenas 9 milhões (para A Guerra das Estrelas, Lucas teve 11 milhões). Douglas Trumbull, que trabalhara com Stanley Kubrick em 2001: Odisseia no Espaço (1968), foi o responsável pelos efeitos especiais do filme, tendo à sua disposição 3,3 milhões do orçamento global — rezam as crónicas da época que ele considerava que, só com esse dinheiro, teria sido possível fazer uma segunda longa-metragem.
Seja como for, para o impacto visual do filme, os cenários naturais revelar-se-iam decisivos. Lembrando as dramáticas dificuldades encontradas durante as cenas do oceano em Tubarão, Spielberg começou por resistir a tal hipótese, mostrando-se empenhado em trabalhar o mais possível em estúdio. O certo é que acabou por compreender que um certo realismo dos lugares era essencial ao impacto da acção, tendo filmado em particular na zona da “Torre do Diabo”, no estado do Wyoming, a formação rochosa que vai obcecando o pai do pequeno Barry (Richard Dreyfuss), funcionando como elo espiritual com os extra-terrestres.


Encontros Imediatos do Terceiro Grau foi um dos grandes sucessos de 1977 nas salas dos EUA, surgindo no terceiro lugar do top de receitas, depois de A Guerra das Estrelas e Os Bons e os Maus, uma comédia com Burt Reynolds. Curiosamente, o filme acabou por ter uma vida comercial dupla. Ou tripla. Isto porque, um ano mais tarde, dificuldades financeiras levaram a Columbia a pedir a Spielberg que fizesse uma nova versão — com um final em que é revelado o interior da nave dos extra-terrestres —, de modo a que o filme pudesse ser relançado, garantindo um índice de receitas fundamental para o estúdio. Spielberg assim fez, vindo a declarar-se profundamente arrependido — a sua versão pessoal e definitiva, identificada como “Collector’s Edition”, só seria comercializada em 1998.

sexta-feira, novembro 17, 2017

Aretha Franklin em versão "digest"

Um grande e amargo embaraço... Porquê, e para quê, refazer algumas gravações clássicas de Aretha Franklin, acrescentando-lhe as competências de uma grande orquestra?
Escusado será dizer que não são as qualidades da Royal Philarmonic Orchestra que estão em causa, muito menos a perenidade dos registos da Rainha do Soul. Escutando A Brand New Me, resta saber o que é que a intrusão da orquestra traz à singularidade de tais registos... Nada — a não ser a embaraçosa vulgaridade de um conceito "digest" da cultura popular em que, como se prova, a energia dos originais se tornou o mais fraco dos valores.
A seguir:
— o video promocional deste infeliz projecto;
— sons do single que inclui Let it Be e Son of a Preacher Man (1970), ou seja, the real thing.



A guerra dos sexos [citação]

[FOTO: Sophie Zhang]
>>> Parece-vos paradoxal, utópico, num mundo globalizado, uniformizado, banalizado, robotizado, evocar a eventualidade de uma actividade criadora dos sujeitos sexuados que somos? Ela existe, e desenvolve-se mesmo, como contra-peso à banalidade que é o mal moderno. E é nessas margens de pequenas inovações, que nos impedem de morrer de banalidade, que procuramos realizar os nossos elementos de genialidade, talvez émulos patéticos dos génios consagrados através dos séculos. O mais pequeno esforço de originalidade, a mais pequena proeza de novidade, não nos exigem que nos reinventemos? Assim, para além da própria bissexualidade psíquica, seja sujeito homem ou sujeito mulher, eu recrio-me até à minha identidade sexual numa plasticidade aberta a inusitadas metamorfoses: com Rimbaud, eu é um outro — homem, mulher, criança, planta, animal, estrela. E, com Colette, transformo-me na carne do mundo.

JULIA KRISTEVA
2016

quinta-feira, novembro 16, 2017

Björk: mais uma canção utópica

Está quase a chegar o álbum Utopia, de Björk. Depois de The Gate, aí está uma nova canção: Blissing Me surge num misto de fluidez e fragmentação, filmada num extraordinário plano-sequência por Tim Walker & Emma Dalzell.

all of my mouth was kissing him
now into the air i am missing him
is this excess texting a blessing
or just two music nerds obsessing

he reminds me of the love in me
i’m celebrating on a vibrancy
sending each other mp3s
falling in love to a song

this handsommest of wickermen
he asked if i could wait for him
now how many lightyears this interim
while falling in love with his songs

his hands are good in protecting me
touching and caressing me
but would it be trespassing
wanting him to be blissing me
robbing him of his youth

cliffhanger like suspension
my longing has formed its own skeleton
bridging the gap between singletons
sending each other these songs

the interior of these melodies
is perhaps where we are meant to be
our physical union a fantasy
i just fell in love with

so i reserve my intimacies
i bundle them up in packages
my rawward longing far too visceral
did i just fall in love with love?


A IMAGEM: Craig McDean, 2008

CRAIG McDEAN
Nicole Kidman
2008

Kelela — passado e presente

R&B alternativo? Sugestivo, sem dúvida. Mas é um rótulo como qualquer outro... O certo é que na actual paisagem de muitas formas gratuitas de miscigenação, não poucas vezes protegidas pela designação cada vez menos operante de "world music", Kelela (nascida em Washington, em 1983) é um pequeno grande fenómeno de singularidades. As suas canções possuem a verdade intrínseca de uma voz firmemente ancorada no presente, sem procurar imitar ninguém, ao mesmo tempo mantendo uma ágil ligação com o passado, os passados. Vale a pena escutar o seu primeiro álbum, Take Me Apart — este é o teledisco de Blue Light.

quarta-feira, novembro 15, 2017

Armani por Sarah Moon

Sarah Moon, a veterana fotógrafa francesa, criadora de imagens de contornos difusos e poses contemplativas, tudo tecido através de uma infinita melancolia, realizou um portfolio para uma nova colecção da casa Armani — podiam ser fotogramas de um filme de Minnelli.

"The Walking Dead": homens e zombies

Andrew Lincoln
Com a oitava temporada, The Walking Dead chega a um novo patamar narrativo e simbólico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Novembro), com o título 'O perdão no mundo dos zombies'.

Na evolução da série televisiva The Walking Dead (Fox), temos assistido a um desconcertante apagamento das figuras dos zombies. Claro que não desapareceram os “mortos andantes” (a tradução literal envolve um sugestivo resumo dos fantasmas deste imaginário), ilustrando, aliás, uma das vias mais surpreendentes do desenvolvimento dos efeitos especiais, quer em cinema, quer em televisão. O certo é que o confronto dos humanos com os zombies passou a ser uma espécie de pano de fundo infernal, emprestando novas intensidades a uma rede de conflitos visceralmente humanos — as imagens de promoção de The Walking Dead passaram mesmo a dispensar a amostragem dos zombies.
Os primeiros episódios da actual oitava temporada (a série arrancou em 2010) narram uma teia de “guerras civis” que envolvem o colectivo inicial, liderado por Rick Grimes (Andrew Lincoln), a assustadora tribo de Negan (Jeffrey Dean Morgan) e mais alguns grupos gerados no processo de resistência aos zombies. O efeito dramático de tal fragmentação já era sensível nas duas temporadas anteriores, mas agora impôs-se como regra de construção. Em boa verdade, The Walking Dead já não é uma epopeia de resistência aos seres que perderam a sua humanidade, mas sim uma tragédia de humanos contra humanos.
Em especial desde a introdução da personagem de Negan, a questão da sobrevivência tem vindo a colocar-se na sua forma mais drástica, precisamente aquela cuja possibilidade Rick nunca colocou de parte. A saber: para sobreviver no meio de tão dantesco cenário, haverá sempre situações em que os protagonistas terão de matar alguns dos seus semelhantes. É verdade que isso não mudou no dispositivo dramático da nova temporada, mas não é menos verdade que a contundência da sua formulação tem vindo a coexistir com a formulação de uma hipótese de perdão. Há mesmo personagens que resistem a matar os inimigos capturados, sendo Paul Rovia (Tom Payne) o líder de tal atitude — nas relações no interior do seu grupo, Rovia é tratado por “Jesus”.
Vale a pena registar estas nuances, quanto mais não seja porque a maior parte dos valores da cultura popular tendem a ser mediaticamente reduzidos a um pitoresco sem consequências (com excepção do futebol, cujos protagonistas são sistematicamente apresentados como modelos universais). Em tempos de muitas narrativas niilistas, os zombies de The Walking Dead coexistem com uma insólita mensagem de tolerância e compaixão: dir-se-ia que há neles uma (ainda mais) inquietante réstia de humanidade.