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1. "O povo falou", proclama Donald Trump. Os políticos tradicionais — os de direita apenas por tradição, os de esquerda por tradição e cansada convicção utópica — esgotaram a palavra povo, desinteressaram-se dela, deixaram-na agonizar no caixote do lixo da história. Imprudente atitude: novos políticos como Trump, tão inclassificáveis que já nem sabemos se a noção clássica de política a eles pode ser aplicada, apropriaram-se da palavra, relançando-a nos circuitos virtuais do presente, aí onde a própria noção de povo se pode confundir com a ilusão de muitos polegares ao alto.
2. No número de balanço de 2016 da revista Time, que elegeu Trump como "Pessoa do Ano", este nomeia a contradição em que, festivamente, emerge como inusitado protagonista. Reconhecendo o luxo espectacular das suas instalações nos andares 66-68 da Trump Tower, em Nova Iorque, diz: "O que surpreende muitas pessoas é que eu estou sentado num apartamento que a maior parte delas nunca viu — e, ainda assim, eu represento os trabalhadores do mundo."
3. Afinal de contas, ele cresceu de candidato caricatural a Presidente eleito da mais poderosa nação do mundo através de discursos marcados, no mínimo, por uma apoteótica mediocridade argumentativa, muitas vezes contaminados por assustadoras componentes racistas e sexistas. Apesar disso, ou melhor, através disso, ele foi eleito, não por extraterrestres que tenham invadido o nosso planeta, mas por pessoas comuns — o povo falou, o povo votou.
4. Nenhuma esquerda (muito menos alguma direita) tem mostrado possuir armas ou bagagens para lidar com tamanho imbróglio. Porquê? Eis uma questão tão incontornável quanto perturbante que passa por um terrível impensado. A saber: a consagração mediática de Trump, avant la lettre, como figura "cómica" do espaço da informação. Tal processo ocorreu, entre risos e arrogâncias várias, sem que essa mesma esquerda tivesse questionado, por um breve instante que fosse, como vemos o social através da comunicação (social, hélas!) — e como vemos ou víamos Donald Trump.
5. Passámos mesmo a viver um tempo em que todas as forças políticas lutam arduamente pela sua própria visibilidade — em particular no espaço televisivo —, mas sem mostrar qualquer disponibilidade, muito menos qualquer espírito crítico, que as leve a problematizar o mundo como entidade mediática. Ficam-se pela pusilanimidade de uma dramaturgia desculpabilizante, perguntando, implicita ou explicitamente: "Como é possível que o povo tenha escolhido Trump?" — 2017 será também um ano de crise conceptual do trabalho político.