O mercado cinematográfico habituou-nos a associar a utilização das três dimensões às grandes produções de Hollywood, povoadas de heróis e super-heróis. Aí está, aliás, neste Natal, um novo capítulo da saga Star Wars, obrigando ao uso dos inevitáveis óculos... Pois bem, importa olharmos à nossa volta, reconhecendo que é mesmo preciso um pouco de tudo para fazer um mundo: o mais fascinante filme em 3D desta quadra (em boa verdade, do ano inteiro) chama-se Os Belos Dias de Aranjuez (em exibição) e tem assinatura do alemão Wim Wenders.
Convenhamos que qualquer cinéfilo minimamente atento saberá que não se trata de uma surpresa. Ao contrário de outros veteranos cineastas, nem sempre muito disponíveis para as mais recentes transformações técnicas, Wenders foi um dos primeiros a reconhecer as potencialidades formais e criativas do formato 3D, com ele registando as coreografias de Pina Bausch para o seu filme Pina, lançado em 2011. Nesse ano, na respectiva estreia mundial no Festival de Berlim, Wenders reconheceu mesmo que, “se não fosse o 3D”, não teria ousado filmar os trabalhos de Pina Bausch.
Porque é que o 3D é tão essencial para a elaboração de um filme como Os Belos Dias de Aranjuez? Precisamente porque, através dele, Wenders assume uma atitude de genuíno experimentador. Para ele, as três dimensões não têm de desembocar num artifício mais ou menos de ficção científica; o seu tratamento específico das imagens pode mesmo estar ao serviço de uma intensificação do realismo.
Sem dúvida uma palavra insólita (“realismo”), sobretudo tendo em conta que se trata de filmar a peça homónima de Peter Handke, um texto admirável centrado em duas personagens — um “homem” e uma “mulher”, de acordo com as indicações do autor — que dialogam sobre os enigmas das relações amorosas, a descoberta do desejo e a nostalgia de uma natureza que a nossa civilização abandonou (edição portuguesa: Documenta, 2014, com tradução de Maria Manuel Viana). O certo é que este é um filme que nos convoca para voltarmos a admirar as nuances da luz, o espaço e a sua profundidade, enfim, o rigor com que as palavras procuram preservar a complexidade anímica e simbólica de qualquer relação humana.
“Fora do tempo”
Há, por isso, um modo raro de representação nos actores de Os Belos Dias de Aranjuez. Reda Kateb e Sophie Semin não surgem como personagens que, de alguma maneira, nos vão revelar o interior da sua “psicologia”. Eles são presenças muito físicas — um par marcado pelos temas e problemas do século XXI — e também figuras de um performance abstracta em que se discute a própria possibilidade de acontecer alguma comunicação um com o outro, uns com os outros.
Como escreve Handke na nota introdutória da sua peça, tudo acontece “como que fora do tempo”. O filme de Wenders explora até às últimas consequências essa sensação de se estar sempre a falar de um presente obsessivamente presente (passe a redundância), sem que tal impeça o cinema de se afirmar como uma cerimónia em que a reprodução das coisas “como elas são” não recusa, antes parece atrair, uma envolvente magia.
É bem provável que Wenders e, sobretudo, o próprio Handke não se reconheçam nas experiências mais extremas do cinema de Marguerite Duras (1914-1996), com as palavras. Ainda assim, encontramos em Os Belos Dias de Aranjuez uma serena sensação de fim do mundo que faz lembrar as perturbantes intensidades de filmes como India Song (1975) ou Son Nom de Venise dans Calcutta Désert (1976) — como se o radicalismo das palavras (“amor”, “natureza”, “Aranjuez”) contaminasse o cinema com os fantasmas de uma utopia perdida.
Em boa verdade, Os Belos Dias de Aranjuez é o mais cristalino dos filmes, tão desarmante na sua transparência que podemos voltar a acreditar no cinema como pura exaltação da vida, do desejo de viver. Sem esquecer que, a certa altura, como uma aparição, somos visitados por um trovador chamado Nick Cave...
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