Telemóveis e drogas, sexo real e sexo virtual: o americano Larry Clark prolonga a sua obra sobre a juventude, agora em cenários parisienses — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Setembro), com o título 'Larry Clark continua a filmar uma juventude auto-destrutiva'.
Será que o cinema dos efeitos especiais, dos monstros digitais e das naves vindas de outras galáxias chegou a um dramático esgotamento? Se considerarmos apenas a contabilidade dos estúdios Marvel ou DC Comics, as respectivas tesourarias não terão dificuldade em convencer-nos que vivemos no melhor dos mundos. O certo é que o efeito de saturação de muitos produtos do género — proporcional aos milhões de dólares gastos na sua promoção planetária — tem vindo a ser acompanhado por uma sistemática reivindicação de realismo por parte de alguns grandes cineastas contemporâneos. O americano Larry Clark (n. 1943) é um desses cineastas e o seu filme O Cheiro de Nós aí está para o demonstrar.
Para Clark, o realismo é, antes do mais, uma questão inerente à imagem fotográfica. Assim, realizou o seu primeiro filme, Kids/Miúdos, em 1995 (portanto, aos 52 anos), depois de uma importante actividade como fotógrafo. O seu lendário livro Tulsa, editado em 1971, constitui mesmo uma referência clássica na história da fotografia “made in USA” e define, afinal, a principal matriz da sua obra cinematográfica. A saber: uma observação metódica, crua e desencantada, de uma juventude mais ou menos desamparada.
O Cheiro de Nós surge como mais um capítulo de uma saga cinematográfica sobre algumas franjas da juventude contemporânea, iniciada com Kids e prolongada por Bully (2001) e Ken Park (2002). Os adolescentes de Clark são sempre personagens errantes e erráticas, evoluindo num quotidiano que foi abandonado pelos adultos. As figuras paternas estão quase sempre ausentes ou, quando surgem, funcionam apenas como sinais de uma radical impossibilidade de diálogo entre gerações. Com alguma ironia, em O Cheiro de Nós, o próprio Clark assume a personagem do velho e decadente ‘Rockstar’, companheiro intermitente de um bando de skaters que vivem o dia a dia num misto de agressividade e impulsos auto-destrutivos.
É um mundo cruel, aquele que Clark regista com a sua câmara ágil, obcecada pelo detalhe realista. Os seus protagonistas vivem na dependência de muitas substâncias tóxicas, ao mesmo tempo que se entregam a práticas sexuais em que a militante promiscuidade fez desvanecer qualquer conceito de intimidade, até mesmo qualquer hipótese de ternura. Num tempo de banalização das imagens privadas, parecem mesmo viver apenas para conseguir registar as mais inusitadas performances nos seus telemóveis.
Relações virtuais
Clark toca, assim, numa questão central, ao mesmo tempo prática e simbólica, do nosso tempo. A saber: até que ponto nos relacionamos realmente uns com os outros? Ou será que já só conseguimos construir (ou imaginar) uma relação a partir de alguma troca de imagens “chocantes” num contexto mais ou menos virtual?
E não deixa de ser desconcertante que Clark seja um cineasta que, depois do impacto de Kids (acontecimento marcante na edição de 1995 do Festival de Cannes), tenha uma presença irregular no mercado do seu próprio país. Assim, podemos estranhar que O Cheiro de Nós chegue às salas portuguesas apenas dois anos passados sobre a sua revelação no Festival de Veneza — o certo é que o filme nem sequer encontrou distribuidor para estrear nos EUA (aliás, tal como Ken Park).
Convém, por isso, não esquecer que, apesar do seu título original em inglês (The Smell of Us), estamos perante uma produção de raiz francesa, centrada num grupo de adolescentes que se reúnem nas imediações do Museu de Arte Moderna, em Paris. Obviamente muito distante de qualquer visão turística da Cidade Luz, Clark acaba por transformar o seu filme num conto moral sobre algumas formas contemporâneas de solidão. Nesta perspectiva, O Cheiro de Nós exibe um desencanto que exclui qualquer hipótese de redenção, sem que isso impeça uma proximidade, muito física e também muito carinhosa, das trágicas atribulações dos seus protagonistas — provavelmente, hoje como sempre, tal proximidade é o princípio essencial de uma estética genuinamente realista.