domingo, setembro 11, 2016

A tragédia de "Love on Top" (3/3)

"Cada dia que passa gosto mais de estar com a Andreia"
A tragédia televisiva contemporânea tem a sua expressão mais eloquente nos horrores quotidianos de Love on Top — aí, cada ser humano, espectador incluído, é (des)educado para ser boçal.

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A interiorização da sua personagem por cada participante de um qualquer concurso (?) de reality TV desafia as categorias mais nobres de entendimento do comportamento humano. Aliás, a própria palavra "interiorização" carece de discussão, levando-nos a invocar, num pólo oposto, a parábola filosófica da galinha que se conta num filme de Jean-Luc Godard (Viver a Sua Vida, 1962) — uma galinha é um animal composto de exterior e interior; quando se tira o exterior, resta o interior; quando se tira o interior, vê-se a alma.
Fiquemo-nos, por isso, pela primeira fase: quando se tira o exterior a um concorrente de Love on Top, o que se vê?... Nada.
Mas esse nada é vivido (admitamos que com algum humano desencanto, mas sobre isso nada sabemos) como celebração (?) de uma intimidade que oscila entre a obscenidade sexual e a pueril degradação de qualquer padrão romântico. Tudo sustentado por uma grosseria psicológica que desafia o mais básico pudor. A imagem aqui reproduzida, por exemplo, surge com esta legenda:

>>> "Cada dia que passa gosto mais de estar com a Andreia", admite Rui, questionado por Teresa Guilherme sobre a sua relação com a algarvia. A jovem de Lagos afirma, no entanto, que está de "pé atrás" com o nortenho. Eliane também comenta o romance dos colegas e admite que ficou "perturbada" pela sua relação mais próxima. "A Andreia acabou há pouco tempo um relacionamento e é normal estar carente", diz a angolana.

Que se passa no interior de quem diz, escreve, difunde, publicita, promove coisas deste teor? Sabemos, em todo o caso, que no exterior se mostram empenhados em proclamar uma irrevogável felicidade. Será que saberão que a sua felicidade, o poder social e mediático da sua felicidade, faz medo? Muito medo.
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PS - Poderá o amor ser uma solução? — o assunto é abordado no diálogo de Anna Karina com Brice Parain (Vivre sa Vie, 1962).