SE AS MONTANHAS SE AFASTAM Zaho Tao |
Com a estreia de Se as Montanhas se Afastam, reencontramos o olhar rigoroso de Jia Zhang-ke sobre o seu país — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Setembro), com o título 'Descobrindo a China através do melodrama'.
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No Festival de Cannes de 2015, cuja selecção oficial acolheu Se as Montanhas se Afastam, o realizador explicou que os seus filmes partem sempre de paisagens e ambientes que ele gosta de ir registando com uma câmara. É a partir das respectivas imagens que vai elaborando as suas personagens e inventando as respectivas histórias, como quem pergunta se as montanhas podem, ou não, mudar de lugar e conferir novas significações a essas mesmas histórias. Numa declaração eivada de objectividade e poesia, Jia Zhang-ke sugeriu mesmo que uma tradução possível do título original do seu filme (Shan he Gu Ren) seria “Os velhos amigos são como a montanha e o rio”.
Quando Se as Montanhas se Afastam chega ao seu capítulo de 2025, para mais em cenários australianos (os dois primeiros decorrem na China), dir-se-ia que experimentamos uma breve e desconcertante sugestão de ficção científica — afinal, para todos os efeitos, o filme parece propor um desenlace “futurista”. Assim é, sem dúvida: trata-se de questionar como poderão evoluir as relações, afinal tão frágeis, entre as gerações. Seja como for, por calculado paradoxo, experimentamos também a sensação de que o tempo cristalizou. No fundo, aquele futuro é tão só outra maneira de dizer as dúvidas, dores e perplexidades do presente.
Jia Zhang-ke pertence à chamada “6ª Geração” do cinema chinês, sendo a “5ª” (Zhang Yimou, Chen Kaige, etc.) a que, para além da sua subtileza histórica e crítica, colocou a China no mapa mundial do cinema. Há nele uma lógica de trabalho que, integrando sempre alguns sinais de natureza documental, não o impede de ser um brilhante e imaginativo contador de histórias. Os seus filmes constituem um reflexo de uma geração (actualmente entre os 40 e 50 anos) que recebeu a pesada herança da Revolução Cultural maoísta, ao mesmo tempo que tem assistido ao vertiginoso e contraditório desenvolvimento das grandes metrópoles. Na sua filmografia encontramos, por exemplo, uma abordagem da sua cidade, Fenyang, nos tempos conturbados da Revolução Cultural (Plataforma, 2000), ou uma crónica profundamente desencantada sobre o crescimento urbano (24 City, 2008).
O mundo em miniatura
Provavelmente, o seu filme com uma carga simbólica mais forte, e também mais subtil, será O Mundo (2004), rodado no Beijing World Park, de Pequim. No seu centro está uma mulher (de novo Zhao Tao) que participa em performances num parque de diversões que se distingue por exibir requintadas miniaturas de muitos lugares e monumentos emblemáticos dos mais diversos países. É um lugar marcado por rotinas sem grandes perspectivas, especialmente concebido para atrair turistas; ao mesmo tempo, a coexistência de miniaturas de referências universais (Torre Eiffel, pirâmides do Egipto, etc.) transforma aquele “mundo” numa espécie de sonho acordado em que, de forma mais ou menos consciente, todos formulam a hipótese de uma existência alternativa.
Agora, Se as Montanhas se Afastam acaba por funcionar como um capítulo mais desse esforço, de uma só vez emocional e intelectual, para descortinar nos conflitos das gerações algo que harmonize o presente ou, pelo menos, salve o futuro. Nesta perspectiva, é um filme que possui essa capacidade sempre fascinante de ser universal (e universalmente compreensível) a partir dos sinais muito particulares de um país e uma dinâmica cultural muito distante da nossa sensibilidade ocidental. Jia Zhang-ke é alguém que reconhece os efeitos da globalização, mas nunca banalizando a imensa paisagem das infinitas diferenças humanas.