sexta-feira, março 11, 2016

Memórias dos estúdios Gaumont

Oito títulos do património dos estúdios Gaumont passaram a estar disponíveis em DVD — este artigo foi publicado na revista Metropolis (nº 36), com o título 'Gaumont x 8'.

Na mais banal mitologia do cinema, a expressão “grande estúdio” parece ser exclusivo de Hollywood. É um logro, ao mesmo tempo histórico e simbólico, que importa superar. Assim, é bem verdade que muitos dos valores espectaculares, estéticos ou narrativos que fazem a história dos filmes são indissociáveis da “fábrica de sonhos” da Califórnia. Mas importa não simplificar e lembrar que outros estúdios, de igual grandeza, marcam a evolução do cinema nos mais diversos contextos.
A Gaumont, por exemplo. Fundada em 1895 por Léon Gaumont, trata-se da mais antiga companhia cinematográfica do mundo, com um património imenso que envolve tanto os maiores sucessos populares como as derivações mais singulares e experimentais. Justamente, para comemorar o 120º aniversário do estúdio, uma colecção de oito DVD (entre os milhares que seria possível convocar) permite-nos redescobrir essa fascinante diversidade.
O menos que se pode dizer é que encontramos aqui um pequeno mas sugestivo leque da evolução da produção cinematográfica francesa, a começar por dois clássicos absolutos: A Atalante (1934) de Jean Vigo, obra-prima de um romantismo que persistiu, pelo menos como utopia formal, na produção francesa; e Paixão (1982), por certo o filme de Jean-Luc Godard que mais e melhor pode simbolizar a sua obsessão pela desmontagem dos artifícios do cinema, celebrando a sua cumplicidade com outras artes, em particular a pintura.
Ainda de Godard, encontramos Atenção à Direita (1987), filme em que o cineasta se coloca em cena para um prodigioso exercício de reflexão sobre a decomposição das relações humanas, tendo por pano de fundo a música rock — concretamente, através da presença de Les Rita Mitsouko [trailer]. E ainda o incontornável Toni (1935), de Jean Renoir, que no seu romantismo amargo constitui um exemplo pioneiro de utilização de cenários naturais e integração de actores não profissionais.
Há ainda três referências historicamente exemplares. Em primeiro lugar, O Vagabundo de Montparnasse (1958), retrato do pintor Amedeo Modigliani, com Gérard Philipe, que Max Ophüls começou a dirigir, tendo falecido durante a rodagem, para ser concluído por Jacques Becker. Depois, Os Malditos (1947), um filme de guerra assinado por René Clément e fotografado por Henri Alekan; e Nove Rapazes, um Coração (1947), de Georges Freedland, um melodrama protagonizado por Edith Piaf.
A grande novidade chama-se As Irmãs Brontë (1979), retrato do universo convulsivo de Emily (Isabelle Adjani), Charlotte (Marie-France Pisier) e Anne Brontë (Isabelle Huppert) que continua a ser um dos mais belos e mais desconhecidos títulos da filmografia de André Téchiné — apresentado uma vez, há cerca de três décadas, pela RTP2, nunca teve estreia nas salas portuguesas.


* TÍTULOS
A Atalante (1934) + Toni (1935) + Os Malditos (1947) + Nove Rapazes, um Coração (1947) + O Vagabundo de Montparnasse (1958) + As Irmãs Brontë (1979) + Paixão (1982) + Atenção à Direita (1987)

* REALIZAÇÃO
Jean Vigo + Jean Renoir + René Clément + Georges Freedland + Max Ophüls + Jacques Becker + André Téchiné + Jean-Luc Godard