FOTOS: Presidência da República |
Como ser Presidente da República depois de ser comentador político no ecrã de televisão? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Março), com o título 'O novo Presidente não se chama Rui Vitória'.
* Nas imediações do Parlamento [dia 9 de Março], alguns cidadãos entrevistados pelas televisões confessavam que, mesmo simpatizando com o novo Presidente da República, não estavam ali por militância — eram apenas habitantes da zona de São Bento ou têm aí o seu local de trabalho. De facto, desta vez, o espaço televisivo não teve à sua disposição aquilo que, por regra, tende a privilegiar: o ruído de multidões ululantes capazes de materializar uma noção pueril de “povo” (no futebol, para satisfazer tal visão, já bastaram duas ou três dezenas de adeptos a insultar alguém à porta de um estádio).
* Escusado será dizer que a trajectória de Marcelo Rebelo de Sousa lhe traz um conhecimento muito fino desta conjuntura televisiva. Aliás, mesmo não admirando o seu registo de comentador político (era o meu caso), importa reconhecer que tem tido o cuidado de não favorecer qualquer utilização populista da sua persona televisiva. A chegada ao Parlamento, na sequência de um pequeno trajecto a pé (a partir da casa que foi dos seus pais) envolveu um inteligente “desvio”: Marcelo expôs-se, não como centro do espaço urbano, antes como peão de um evento que, em breves minutos, o iria consagrar como protagonista.
* Tais peripécias foram sintomáticas de um estado de coisas que, ao longo dos anos, se tem agudizado. A saber: os modelos televisivos dominantes gostam de imaginar uma visão grandiloquente do universo político, mas a sua linguagem (sobretudo a linguagem do directo) favorece sempre, inevitavelmente, uma lógica de “apanhados” — António Guterres a entrar pela zona lateral do Parlamento, por momentos sem ser visto pelos elementos do protocolo, acabou por ser o incauto protagonista de um desses “apanhados” (com admirável “fair play”, importa reconhecer).
* Nada disto pode ser descrito de forma maniqueísta, muito menos moralista. Por exemplo, a cerimónia inter-religiosa na Mesquita Central de Lisboa conseguiu, pelo menos, contrariar a confusão simbólica que marca muitos fragmentos noticiosos que, em poucos segundos, nem que seja por falta de reflexão jornalística, colam de forma automática a palavra “religião” às mais variadas formas de belicismo.
* O Presidente Marcelo tem um desafio fascinante a enfrentar: o de lidar com um universo de comunicação que bem conhece e que nem sempre se mostra disponível para consagrar o carácter muito sério de qualquer prática política. Dito de outro modo: pelas sete da tarde, Rui Vitória não era o presidente empossado e André Villas-Boas não tinha perdido as eleições.