SALVE, CÉSAR!, de Ethan e Joel Coen |
No novo filme dos irmãos Coen, Salve, César!, George Clooney deambula pelas memórias da idade de ouro de Hollywood: é mais um momento exemplar de uma carreira plural — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Fevereiro), com o título 'Entre a alegria da comédia e a vulnerabilidade do drama'.
Universalmente consagrado como símbolo de elegância e charme, George Clooney continua a ser motivo de sarcasmo por parte de Joel e Ethan Coen. Assim volta a acontecer em Salve, César! (estreia quinta-feira), evocação nostálgica e cómica de Hollywood na década de 50 em que Clooney interpreta a vedeta de um épico da Roma antiga, cuja arte de representar não será o seu talento mais visível...
Em boa verdade, tudo isso resulta de uma evidente cumplicidade com os irmãos Coen que já o tinham dirigido nas comédias Irmão, Onde Estás? (2000), Crueldade Intolerável (2003) e Destruir Depois de Ler (2008). Dir-se-ia que tal exposição, contra a sua própria imagem de marca, serve o método de trabalho de Clooney: o actor que todos conhecemos como símbolo promocional do café Nespresso (e também de outras marcas, como o vermute Martini ou os automóveis Fiat) não abdica de uma versatilidade artística que, ironicamente, talvez passe despercebida a muitos dos seus fãs.
Bastará recordar a sua performance nos Oscars da Academia de Hollywood. Assim, ganhou um Oscar de interpretação (melhor actor secundário) em Syriana (2005), filme de Stephen Gaghan sobre os bastidores da geopolítica do petróleo. Mas é um facto que, na sua galeria de prémios, conta com outra distinção da Academia de Hollywood, porventura bem mais importante: na qualidade de produtor, Clooney arrebatou, com Argo, dirigido por Ben Affleck, o Oscar de melhor filme de 2012 (partilhado com Grant Heslov e o próprio Affleck).
Associado a Soderbergh
O início da actividade de Clooney como produtor é indissociável da sua amizade com o realizador Steven Soderbergh. Assim, visando apoiar os seus próprios projectos, constituíram, em 2001, a companhia Section Eight, lançada com a produção de Ocean’s Eleven, uma realização de Soderbergh com um elenco de luxo que, além de Clooney, incluía, entre outros, os nomes de Brad Pitt, Matt Damon e Julia Roberts. Continua a ser o maior sucesso de Soderbergh e o segundo da carreira de Clooney (apenas superado, em 2013, por Gravidade, de Alfonso Cuáron).
Embora extinta em 2009, a Section Eight deixou um legado invulgar, incluindo títulos tão originais e ousados como o “thriller” Insomnia (2002), de Christopher Nolan, o melodrama Longe do Paraíso (2002), de Todd Haynes, e a animação para adultos A Scanner Darkly (2006), de Richard Linklater. Foi, aliás, com chancela da Section Eight que Clooney se estreou como realizador em Confissões de uma Mente Perigosa (2002), baseado na autobiografia de Chuck Barris, popular apresentador de televisão que terá trabalhado ao serviço da CIA.
Na prática, Clooney tem mantido uma actividade regular como realizador, sendo Boa Noite, e Boa Sorte (2005) o seu trabalho mais complexo e exigente. Através de uma metódica evocação da rádio e da televisão em meados da década de 50 (aliás, recuperando o tipo de fotografia a preto e branco típica de filmes da época), o filme destaca Edward R. Murrow, interpretado por David Strathairn, como um dos jornalistas da CBS empenhado em denunciar a histeria anti-comunista que se instalou no início da Guerra Fria e, muito em particular, a acção do senador Joseph McCarthy.
Insolitamente, Batman & Robin (1997), de Joel Schumacher, um dos filmes de Clooney que mais parecia corresponder à sua condição de super-estrela, ficou também com um dos maiores desastres artísticos da sua carreira (no plano financeiro, é também o título menos rentável de todos os que se fizeram em torno das aventuras do “Homem Morcego”). Dir-se-ia que aprendeu a lição, não voltando a arriscar-se no universo dos super-heróis.
Entre comédia e drama
Os filmes mais memoráveis de Clooney são, afinal, aqueles em que o actor explora o seu gosto pela comédia, bem expresso nas colaborações com os Coen e também nas continuações de Ocean’s Eleven (Ocean’s Twelve e Ocean’s Thirteen, respectivamente em 2004 e 2007), ou desenvolve composições marcadas por uma talvez inesperada vulnerabilidade moral e emocional.
Entre estes, poderemos incluir Três Reis (1999), desencantada visão da Guerra do Golfo assinada por David O. Russell, Solaris (2002), adaptação do romance de Stanislaw Lem dirigida por Steven Soderbergh (trinta anos depois da versão de Andrei Tarkovsky), ou Nas Nuvens (2009), em que Jason Reitman constrói o retrato metódico e implacável de um executivo cuja função regular é despedir pessoas.
Envolvido em muitas acções humanitárias ao serviço das Nações Unidas (nomeadamente na defesa de uma solução pacífica para o conflito do Darfur, no Sudão), a personalidade cinematográfica de Clooney é indissociável de uma herança liberal inscrita na história moderna do cinema americano, em particular na geração de autores (Arthur Penn, Alan J. Pakula, Sydney Pollack, etc.) surgidos no interior das convulsões temáticas e estruturais de Hollywood ao longo da década de 60.
Entretanto, em Maio, vamos vê-lo em Money Monster, um “thriller” passado no mundo da televisão em que contracena com Julia Roberts, sob a direcção de Jodie Foster [video: trailer] — tendo em conta as respectivas datas internacionais de estreia, poderá muito bem ser o filme oficial de abertura (11 Maio) do Festival de Cannes.