RICHARD CORLISS (1944 - 2015) |
Os Oscars deixaram também uma teia de memórias que não pode ser dissociada da dinâmica do presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Março), com o título 'Uma genuína celebração'.
Na cerimónia dos Oscars, entre as personalidades evocadas no segmento “In Memoriam” (este ano pontuado por uma bela versão acústica do clássico Blackbird, dos Beatles, por Dave Grohl [video]), a Academia de Hollywood evocou um crítico de cinema: Richard Corliss, falecido a 23 de Abril de 2015, contava 71 anos, com uma notável carreira ligada, em particular, às revistas Film Comment e Time. O facto transcende qualquer vício corporativo: através das suas muitas facetas, por certo pontuadas por clivagens e contradições, Hollywood concebe o pensamento sobre o cinema como um território que, longe de ser uma excrescência mais ou menos pitoresca, integra o domínio global da cinefilia.
Há poucos dias, precisamente na revista Time (22 Fev.), Stephanie Zacharek, herdeira profissional de Corliss, propunha uma reflexão sobre “aquilo que os Óscares deste ano dizem sobre a América”. A sua interessantíssima argumentação desembocava no filme Creed: o Legado de Rocky (que valeu a Sylvester Stallone uma nomeação para melhor actor secundário), definindo-o como “o mais americano” dos títulos lançados ao longo de 2015: “Se Creed tivesse tido uma nomeação para melhor filme do ano, teria sido o mais capaz de mostrar onde está actualmente o nosso país, em particular qual o aspecto das nossas cidades — passa-se numa Filadélfia nada turística, enérgica mas ainda agreste nas suas margens — e quem realmente nelas habita.”
Podemos, talvez, lembrar que também encontramos as convulsões da nação americana no vencedor do Oscar de melhor filme, O Caso Spotlight, celebrando os valores de um jornalismo que não abdica da mais austera deontologia, ou ainda em A Queda de Wall Street, expondo os cruéis bastidores da crise financeira. Em qualquer caso, o texto de Zacharek recorda-nos algo de essencial: a definição de Hollywood como uma fábrica “afogada” no seu próprio poder tecnológico e comercial sempre foi, e continua a ser, insuficiente para compreender a sua diversidade interior.
Diversidade, justamente, foi a palavra de ordem de uma cerimónia que, porventura surpreendendo muitos espectadores, arriscou lidar, de princípio a fim, com os sinais das polémicas em torno das nomeações “brancas” e “negras” dos Oscars deste ano. Desde o humor de Chris Rock até ao discurso de Cheryl Boone Isaacs (presidente da Academia), o espectáculo do Dolby Theatre foi uma genuína celebração de valores que transcendem a futilidade “cor de rosa”. Podemos sempre refugiar-nos na visão cínica de tudo isto como um imenso aparato de ilusões — se o fizermos, estaremos “apenas” a menosprezar mais de um século de história, de filmes e muitas histórias.