LAURA (1944), de Otto Preminger |
A gestão das imagens — de qualquer imagem — envolve sempre alguma visão do mundo (e não necessariamente das mais saudáveis) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Junho).
Eis uma imagem lendária da história da cinefilia. O detective Mark McPherson (Dana Andrews) contempla o retrato de Laura Hunt (Gene Tierney), cuja morte anda a investigar — no seu olhar há algo de religioso porque, como um amigo já lhe fez sentir, ele apaixonou-se por uma morta. É um momento emblemático do filme Laura (1944), de Otto Preminger, obra-prima do filme noir — como o leitor provavelmente recordará, na sequência deste olhar, Mark senta-se num sofá e adormece; ao acordar, Laura aparece-lhe e não é um sonho...
Lembrei-me deste exemplo modelar da nossa relação ambivalente com as imagens a propósito de um episódio recente do universo futebolístico. Assim, na sequência da saída do treinador Jorge Jesus do Benfica, a loja do clube retirou a sua imagem de uma estrutura tridimensional em que ele surgia com os jogadores, assinalando a comemoração do 34º título nacional da equipa.
Fotos: JN |
A mesquinhez moral do gesto é pouco interessante. Em boa verdade, vejo-o apenas como (mais) uma variação dos discursos correntes com que, um pouco por toda a parte (a começar pela televisão), alguns adeptos de Benfica, Sporting e F. C. Porto manifestam o seu clubismo. O que vale a pena questionar é o entendimento do devir histórico que aqui se exprime: quando alguém se transforma em persona non grata, o recalcamento do seu papel histórico (seja ele qual for) manifesta-se através da supressão da respectiva imagem.
Conhecemos as expressões mais brutais deste tipo de relação com o poder evocativo das imagens. Assim, na União Soviética, muitas personalidades caídas em desgraça junto de Josef Estaline foram, pura e simplesmente, suprimidas das fotografias da Revolução de Outubro (recordo um célebre registo de Lenine, a discursar num púlpito: Leon Trotsky e Lev Kamenev, na base do púlpito, a certa altura desapareceram da imagem).
Fotos: Wikipedia |
Bem sabemos que o estalinismo foi um sistema monstruoso que não se limitou a “corrigir” as imagens, muitas vezes fazendo desaparecer as próprias pessoas. E convém não esquecer que o Benfica é apenas (sublinho: apenas) um clube que existe numa sociedade democrática. O que está em causa é o modo como a gestão pública das imagens — ou a gestão das imagens públicas — envolve sempre alguma visão do mundo e, em particular, um sistema específico de (des)valorização de cada ser humano.
Infelizmente, o gesto do Benfica é mesmo um sintoma de uma vontade de não ver que, de uma maneira ou de outra, tem contaminado a consolidação da nossa democracia, desde os tempos já remotos de 1974 — recordo, por exemplo, a supressão de algumas estátuas de figuras da ditadura salazarista no jardim do Campo Grande, em Lisboa. Na prática (ou melhor, na percepção política do mundo), tende a confundir-se a imagem de alguém com um mero emblema de “virgindade” iconográfica ou, então, de “pecado” existencial — quer isto dizer que os nossos olhares estão submetidos a um sistema figurativo enraizado no esquematismo da imprensa cor-de-rosa.