Memórias de Ingrid Bergman (1/2)

CASABLANCA (1942)

Reencontramos Ingrid Bergman através do olhar de Rossellini, mas vale a pena recordar a amplitude e diversidade da sua filmografia — este texto integrava um dossier sobre a actriz, publicado no Diário de Notícias (28 Março), com o título 'A actriz sueca que conquistou Hollywood'.

Graças ao ciclo de cópias restauradas de filmes de Roberto Rossellini (a decorrer em Lisboa e, a partir de 9 de Abril, no Porto), é possível por estes dias redescobrir o período mais heterodoxo da filmografia de Ingrid Bergman. É bem certo que títulos como Stromboli (1950) ou Viagem em Itália (1954) são hoje reconhecidos como referências clássicas — por exemplo, no Top 50 dos “melhores filmes de sempre”, publicado em 2012 pela revista britânica Sight & Sound, Viagem em Itália ocupa a 39ª posição. De qualquer modo, o clima de ficção rodada como se fosse um documentário, tão caro à visão de Rossellini, representou, na altura, um contraste radical na trajectória da actriz sueca que tinha conquistado Hollywood.

As memórias desse período — Rossellini e Ingrid Bergman colaboraram em cinco filmes, tendo sido casados no período 1950-57 — baralham-se com uma certa aura de escândalo. Muitos sectores da sociedade americana, incluindo os mais poderosos meios de comunicação, não perdoaram o facto de Ingrid Bergman ter iniciado uma relação com Rossellini (durante a rodagem de Stromboli), sendo ainda casada com Petter Aron Lindström (tinham contraído matrimónio na Suécia, em 1937). Ela era, afinal, uma daquelas figuras cuja imagem parece capaz de estabelecer um equilíbrio mágico entre a vulnerabilidade humana e a transcendência mitológica. Nessa perspectiva, pode mesmo dizer-se que entrara em Hollywood pela porta do romantismo.

Quem a convidou foi o produtor David O. Selznick, na altura já envolvido na preparação do épico E Tudo o Vento Levou. Tinha-a descoberto em Intermezzo, um título sueco de 1936 em que Ingrid Bergman interpretava uma pianista que se apaixona pelo violinista a cuja filha dá lições. Selznick desde logo imaginou a possibilidade de um remake feito nos EUA, com a actriz a retomar a sua personagem. Assim aconteceu e o Intermezzo americano, dirigido por Gregory Ratoff, com Leslie Howard no papel do violinista, surgiu em 1939, quase a par de E Tudo o Vento Levou. Estrearam ambos nos últimos meses do ano e é um facto que Intermezzo não teve o impacto do seu concorrente (em termos proporcionais, E Tudo o Vento Levou continua a ser a produção mais rentável da história do cinema americano), mas fez nascer uma estrela chamada Ingrid Bergman.

O enigma da actriz confundia-se com a transparência da sua presença face a uma câmara de filmar. Atravessava-se, aliás, um período em que se questionava um tipo de pose ainda ligado aos artifícios do cinema mudo. Basta recordar que 1939 foi também o ano em que Greta Garbo superou a sua imagem mais austera, rodando Ninotchka, uma comédia “policial” dirigida por Ernst Lubitsch.

Depois, como por vezes se diz, a história confunde-se com a lenda. Por um lado, Ingrid Bergman encontrou em Casablanca (1942), de Michael Curtiz, o papel que a inscreveu, definitivamente, no imaginário popular: o par que formou com Humphrey Bogart há muito superou qualquer matriz dramática, transformando Casablanca, um melodrama de guerra, numa exaltação do próprio cinema como espectáculo maior que a vida; por outro lado, foram decisivos os filmes em que foi dirigida por Alfred Hitchcock, outro europeu que tinha chegado a Hollywood a convite de Selznick.

É bem verdade que as relações do realizador com o produtor nunca foram muito pacíficas. Em qualquer caso, o primeiro filme em que Hitchcock dirigiu Ingrid Bergman — A Casa Encantada (1945), uma subtil visão da psicanálise, com Gregory Peck — teve ainda chancela de Selznick. Seguiu-se Difamação (1946), com Cary Grant, um clássico absoluto sobre jogos de espionagem durante a Segunda Guerra Mundial, e Sob o Signo de Capricórnio (1949), prodigioso drama passional na Austrália de meados do séc. XIX e uma das mais complexas interpretações de toda a carreira de Ingrid Bergman — comercialmente prejudicado por não repetir o modelo de thriller que tinha popularizado Hitchcock, e também pelo facto de o seu lançamento ter ocorrido na altura em que se começava a noticiar a relação com Rossellini, Sob o Signo de Capricórnio é um filme, ainda hoje, muito pouco conhecido.

Entretanto, Ingrid Bergman já obtivera o reconhecimento da Academia de Hollywood: ganhara o Oscar de melhor actriz graças a Meia Luz (1944), sofisticado melodrama em tons de filme noir, dirigido com mão de mestre por George Cukor. Depois dos filmes com Rossellini, fez Helena e os Homens (1956), um divertimento genial assinado por Jean Renoir, e Anastasia (1956), uma comédia de equívocos de Anatole Litvak que, apesar da sua menoridade, lhe valeu o segundo Oscar de melhor actriz.

Ganhou ainda um terceiro Oscar, desta vez de melhor actriz secundária, pela sua participação em Um Crime no Expresso do Oriente (1974), por certo uma das mais sofisticadas adaptações cinematográficas de Agatha Christie, dirigida por Sidney Lumet. E não deixa de ser irónico que, tal como a sua carreira, este tenha sido um filme gerado, por assim dizer, entre dois continentes: uma produção britânica com realização de um americano.