sábado, abril 04, 2015

A guerra, segundo Rossellini


Num texto que publicou em 1955 nos Cahiers du Cinéma, Roberto Rossellini recordava como em finais de 1944, depois do final da ocupação alemã (mas ainda a meses do fim da guerra), a Itália era um país destruído. E o mundo do cinema não escapara ao mesmo destino de tantas outros. Os produtores tinham desaparecido e os meios disponíveis eram praticamente nulos. Mas havia um sentido de liberdade, que decorria do próprio clima de mudança que se respirava. E, sem a carga de uma indústria cinematográfica, o cinema aventurou-se por caminhos que Rossellini descreveu então como sendo menos rotineiros. Experimentar e tentar eram os verbos a conjugar.

E foi nesse contexto que criou o primeiro de uma série de três filmes que não só representam o início de uma perspetiva sobre a guerra sem os pontos de vista de propaganda a que muitos dos títulos criados entre 1939 e 45 haviam sido subjugados (afinal era para isso mesmo que muitos deles haviam sido criados) como assinalaria, no caso de Roma, Cidade Aberta (1945), um abrir de portas ao neorrealismo em Itália e, com ele, toda uma nova forma de fazer e pensar o cinema.

O primeiro dos três filmes da trilogia de guerra que Rossellini apresentou entre 1945 e 48 começou a surgir ainda os alemães ocupavam parte do território italiano. As contingências – que vão da impossibilidade de acesso às estruturas habitualmente usadas pelo cinema italiano (entre elas as da Cinecittà) à escassez de materiais (nomeadamente película) – obrigaram o engenho a falar mais alto. Havia uma história para contar. Que começou por ser a de um pároco resistente, entretanto morto pelos alemães, e que seria recordada num registo documental.

A evolução do processo encaminhou Rossellini para criar uma ficção que, pela forma como foi rodada e montada, não deixa de transportar alguma dessa carga de relacionamento com a realidade. Não havendo forma de revelar o que ia sendo filmado, não havia sessões de visionamento de rushes, ou “brutos” como podemos dizer em português, pelo que se filmava o que acontecia e, tal como um documentarista capta uma realidade não encenada, também ali se acreditava no que a câmara filmara, não havendo maneiras de repetir.

A produção do filme tem um episódio curioso no departamento financeiro, e que o próprio Rossellini em tempos chegou a contar entre nós. Uma mulher dizia ter numa cómoda o dinheiro para financiar o filme. Mas, descrente nas gentes do cinema, dizia que só lho daria depois de começar a rodagem. Ao abrir a gaveta da cómoda não havia uma nota. Era “uma louca”, descreveria Rossellini, que conseguiu um acordo com uma distribuidora, mesmo assim vivendo momentos difíceis quando, na hora de entregar a montagem final e reclamar a soma combinada, lhe respondem que o que ali mostrava não era um filme, complicando assim os trâmites do contrato…

Era um filme diferente. Mas era um filme, e que filme! Rodado em Roma, mostrando aqui e ali cicatrizes de uma cidade em tempo de guerra, acompanha a tentativa de esconderijo e fuga de um resistente num prédio de um bairro popular, contando com o apoio de uma família e do pároco da igreja ali perto, em tentativa de fuga à rede montada pelos alemães, contando com a ajuda da polícia local, de milícias ligadas ao poder fascista e uma teia de informadores, sob gestão da amante do comandante nazi.

Com um desencanto que no fundo traduz a alma espezinhada do ocupado perante aquele que domina pela força, a Roma que aqui se mostra divide-se entre os que tentam a sobrevivência, os que procuram resistir e combater (nem que muitas vezes dando uma mão de auxílio) e os que cedem ou auxiliam o ocupante. Apesar de essencialmente feito com atores não profissionais, o filme coloca num dos papéis centrais uma espantosa Anna Magnani (é dela uma das mais icónicas sequências do filme) e um não menos brilhante Aldo Fabrizi (ator e mais tarde também ele realizador) no papel do pároco Don Piero.


O plano final de Roma, Cidade Aberta, com um grupo de rapazes a caminho da cidade, aparecendo a cúpula de São Pedro a sublinhar o aqui e agora do momento, acaba por ter continuidade nas imagens do episódio vivido na mesma cidade em Paisà – Libertação. Criado imediatamente após Roma, Cidade Aberta, é a história, contada em seis episódios, do progressivo avanço dos aliados (americanos e ingleses) e consequente recuo dos alemães, não apagando o cenário de evidente desaire para estes últimos a violência com que continuam a agir sobre os que resistem (e que fica evidente na matança dos derrotados no episódio final).

Paisà descreve um movimento de sul para norte, afinal o mesmo que tomou a libertação de Itália, com episódios que se situam, sucessivamente, na Sicília, Nápoles, Roma, Florença, a região montanhosa de Apenino Emiliano e o delta do rio Pó. Através dos episódios, uma vez mais essencialmente criados com gentes locais como atores, Rossellini observa formas de relacionamento do povo italiano para com os libertadores aliados e os ocupantes alemães, mas também os que até recentemente tinham vivido em sintonia com o regime fascista. O tom cético com que um homem mais bem-posto acolhe os americanos no primeiro episódio e os caçadores furtivos das milícias fascistas em Florença são um exemplo destes olhares que fazem com que Paisà não se limite a um olhar dos italianos para com os outros, mas também sobre si mesmos.

Há depois uma série de planos secundários nos quais outras realidades se exploram, do elemento melodramático introduzido no episódio de Roma – no qual um soldado não reconhece uma prostituta que o marcara emocionalmente seis meses antes, revelando assim o desencanto que o dominou entretanto – ou os diálogos entre capelães americanos e os monges de um mosteiro mais adiante, em plena montanha. O desconforto, medo e morte no episódio final devolvem-nos a uma linha mais dura de combates e luta pela terra e pela sobrevivência, lembrando, depois do desfecho trágico, que meses depois a guerra acabaria.

É nesse ponto que Rossellini retoma a história para contar em Alemanha, Ano Zero, de 1948, o capítulo final desta trilogia. É numa estada em Paris que pede para visitar Berlim e aí chegado, em março de 1947, vê uma cidade em escombros. É nela que projeta uma narrativa que, diferente das apresentadas em Paisà e Roma, Cidade Aberta, não foca a guerra e quem a faz, mas os que vivem as consequências. Mostrando a guerra do ponto de vista do derrotado – algo que Cate Shortland voltou a fazer no brilhante Lore –, Rossellini abre aqui um espaço para, entre os olhares sobre uma cidade destruída e uma população mais atenta às leis da sobrevivência que à curiosidade por ver equipas de filmagens na rua, construir a história pungente de um jovem alemão que habita com os irmãos (um deles um ex-soldado de um batalhão que adivinhamos associado a eventuais crimes de guerra) e pai (acamado) num andar onde várias outras famílias partilham infortúnios semelhantes.

O jovem Edmund (interpretado por um rapaz alemão que Rossellini descobre num espetáculo de circo que vê nessa altura) erra pela cidade, entre mãos tendo a missão de levar comida, cigarros ou alguns marcos para casa, ora para a gestão familiar ora a mando dos vizinhos. A sua errância leva-o por ruas em cacos, onde multidões se juntam para esquartejar um cavalo que cai morto ou gangues tentam assaltar comboios qua trazem carregamentos de batatas. A ingenuidade com que vive alguns dos momentos e encontros não adivinha o desfecho trágico, numa fresta de adulta lucidez, desilusão e desespero, que mais tarde o espera.

Uma das mais impressionantes sequências de Alemanha, Ano Zero reforça um quadro que volta a esboçar uma diluição de fronteiras entre a ficção e o documentarismo, mesmo sendo este o filme no qual a narrativa é mais trabalhada, apesar de os diálogos terem sido improvisados pelos atores e sabendo-se que as cenas de interiores foram depois rodadas em estúdio, em Roma. Nessa sequência impressionante o pequeno Edmund visita (in loco) uma esventrada Chancelaria do Reich, onde um grupo de soldados aliados tira uma foto em grupo perto da zona onde um diz que o corpo de Hitler foi queimado, para vender um disco com discursos do fürher a um deles. Ao escutar a voz, que ressoa no espaço quando um gramofone toca o disco para provar que é aquilo que Edmund quer vender, um homem para e escuta, como que aterrado por uma voz que vem de um tempo recente, que se liga inevitavelmente àquele lugar, mas não é mais de ali.

Se hoje reconhecemos no primeiro destes três filmes, Roma, Cidade Aberta, um pilar na história do cinema, a verdade é que a sua estreia em Itália foi como um pequeno grito mudo tal como foi discreta, como recordaria Rossellini, a sua passagem por Cannes. Foi em Paris, pouco mais tarde, que surgiu o reconhecimento, que chegaria igualmente entusiasmado dos EUA, abrindo assim espaço para uma atenção para com o novo cinema italiano que em breve respiraria uma das etapas mais vibrantes da sua história.

Este texto foi originalmente publicado na Máquina de Escrever