Um avião teve um acidente terrível nos Alpes... Porque é que a linguagem televisiva dominante se assume como "revelação" de todas as significações? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Abril), com o título 'A revolução adiada'.
Subitamente, temos mais “informação” sobre Andreas Lubitz do que sobre muitas pessoas, inclusive da nossa família, que sempre fizeram parte da nossa história pessoal... O mundo televisivo do século XXI é assim. Por um lado, houve um desastre de avião, ao que tudo indica provocado por um homem com graves problemas psíquicos; por outro lado, desde o terrível acontecimento, fomos condenados a viver assombrados pelos infinitos detalhes da vida de Lubitz, promovido à condição de bezerro de ouro do altar televisivo.
Escrevo na altura em que a CNN dá conta da existência de um vídeo de um telemóvel (a que a revista francesa Paris Match e o jornal alemão Bild terão acedido), registando os segundos que precederam o impacto do avião nos Alpes franceses — a notícia baseia-se na descrição feita por investigadores do desastre, referindo, entre outros detalhes, os “sons dos passageiros a gritar”.
Qual a pertinência deste tipo de exposição, sempre à beira da mais rude pornografia existencial? Muitas vezes se pergunta como, e onde, se deve desenhar uma fronteira entre o que faz sentido noticiar e tudo aquilo que não deve ser transformado em matéria noticiosa. Por mim, sou dos que pensam que tal pergunta funciona como uma perversa petição de princípio. Porquê? Porque desloca a questão para um plano em que a intervenção jornalística se reduz a uma estúpida medida de “choque” — como se fazer jornalismo se tivesse reduzido à escolha do grau de violência emocional com que se decide agredir o espectador.
Assistimos a semelhantes exercícios de retórica deontológica quando as boas almas lusitanas se preocupam com o facto de serem divulgados dados de processos judiciais “em segredo de justiça”. O que ninguém diz é que, se é rigor o que se procura, só há uma cândida solução. Qual? A recusa, por toda a classe jornalística, de procurar e divulgar tais elementos. Não acredito que as revoluções sejam máquinas automáticas de pureza ou libertação — mas não tenho dúvidas que tal atitude seria revolucionária.