Meio século depois vale a pena regressar a Música no Coração e acertar algumas contas com as memórias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Março), com o título 'Memórias da família von Trapp'.
Pertenço à geração que mais preconceitos alimentou em relação a Música no Coração (1965), de Robert Wise. Éramos crianças quando descobrimos o filme num misto de deslumbramento e celebração, desfrutando as coisas felizes que existiram na década de 60 (já basta dessa impostura alimentada por alguma esquerda segundo a qual passámos infância e adolescência com medo de sair à rua, escondidos em casa a soletrar Marx e a imprimir panfletos clandestinos, sem sequer sabermos que havia Beatles e Rolling Stones). Vibrámos com as atribulações da família von Trapp perante a ameaça nazi e com o depurado romantismo da ligação do austero Capitão Georg von Trapp com a inocente e irresistível noviça Maria — e registámos nas nossas memórias os nomes dos respectivos intérpretes, Christopher Plummer e Julie Andrews.
Vieram as abençoadas convulsões históricas e as euforias ideológicas da década de 70 e, entre as muitas ilusões com que afirmámos a nossa condição de adultos, achámos por bem denegrir Música no Coração. Que coisa superficial e piegas... Em boa verdade, se fôssemos assim tão exigentes, passaríamos agora os dias a verberar a avalancha de mediocridades telenovelescas com que ocupámos o espaço da comunicação e do consumo (assim é: foi também a minha geração que produziu muitos dos decisores que nos conduziram ao actual estado de letargia narrativa e audiovisual).
Nem que seja por uma questão de alegria do espírito, vale a pena sublinhar que se está a comemorar o primeiro meio século de Música no Coração. E que qualquer visão estupidamente anedótica do filme está condenada a passar ao lado, não apenas das suas singularidades narrativas, mas também da sua importância histórica.
Há dias, numa sessão especial realizada no Hollywood Chinese Theatre, integrada no festival de cinema do canal de televisão Turner Classic Movies, o par de protagonistas recordou a rodagem de Música no Coração nas montanhas austríacas. De acordo com uma reportagem de Julie Miller (Vanity Fair), foram momentos de calorosa e sincera partilha de memórias, com Christopher Plummer, inclusive, a reconhecer que começou por não tomar o projecto muito a sério, reconhecendo-lhe hoje o valor de “um derradeiro bastião de inocência num tempo de muito cinismo”.
Julie Andrews referiu, em particular, as dificuldades criadas pelo frio e pela chuva, recordando a deslocação (“num carro puxado por dois bois, ao lado do equipamento fotográfico”) antes da rodagem da célebre cena, luminosa depois da tempestade, em que canta o tema emblemático do filme (The hills are alive / With the sound of music). Tal cena concentra, aliás, o desafio mais radical de Música no Coração: prolongar os artifícios da tradição do cinema musical, agora assumindo os riscos técnicos e expressivos dos cenários naturais. Sabemos que a indústria não pôde, ou não soube, prolongar tal via de espectáculo, mas isso não é razão para minimizarmos as aventuras dos corajosos von Trapp.