Abel Ferrara |
No seu Pasolini, Abel Ferrara encena um cineasta marcado pela história trágica de Itália: o filme foi feito logo após Welcome to New York (ainda por estrear entre nós), inspirado no escândalo de Dominique Strauss-Kahn — esta entrevista com Ferrara foi publicada no Diário de Notícias (31 Dezembro), com o título '“Nem os melhores amigos de Pasolini sabiam como ele era”'.
Será que podemos dizer que o seu Pasolini é uma personagem à procura de algum tipo de redenção?
Não sei. Para mim, e também para o Willem Dafoe, tratava-se de tentar perceber o que estava a acontecer na cabeça de Pasolini. Em boa verdade, gostava de saber como é que Pasolini definiria a palavra “redenção”. Pode dizer-se que ele foi o centro de toda uma paisagem criativa em que sempre soube encontrar o equilíbrio entre o trabalho e a família, garantindo a si próprio o tempo que precisava para escrever, para fazer filmes. Mais do que isso: o tempo para escapar a tudo isso e procurar aquilo que sentia necessidade de procurar. Em particular procurando as “razões” (entre aspas) do seu prazer — podia não ser o prazer dos outros, mas era o seu. E é preciso não esquecermos que ele viveu a tragédia da Itália: a ascensão do fascismo, a invasão dos nazis e depois, num certo sentido, a invasão dos americanos e dos exércitos aliados — foram, afinal, momentos que conduziram à libertação de Itália. Seguiu-se a tomada do poder pelos democrata-cristãos, uma “era dourada” (de novo entre aspas) de progresso e daquilo que para ele era o maior flagelo, ou seja, o consumismo. Creio que, de certa maneira, como intelectual, como homem de acção, ele se sentia responsável por tudo isso — como tinha sido possível o país ter chegado ao que chegou?
Pier Paolo Pasolini |
Através dele, acabamos por rever também a história de Itália.
É uma realidade que ele não pode nem quer evitar. Quando se vive dessa maneira, no fim de tudo isso há qualquer coisa de destino, de “karma” — acabou morto numa praia... Pasolini sabia a vida que vivia. Na sua derradeira entrevista, foi ele próprio que o disse: “Tenho de pagar pelas consequências das minhas acções e vou até ao inferno, se for preciso”. Voltando à palavra “redenção”... Como é que podemos definir redenção?
Talvez no sentido de não desistirmos de acreditar que o Bem é possível contra o Mal. Para além de todas as diferenças de história e contexto, a questão também surge a propósito da personagem de Devereaux (Gérard Depardieu), em Welcome to New York, quando diz “sei que não vou mudar”.
E, no caso dele, sem qualquer hipótese de redenção. Devereaux é alguém que não vai, obviamente, sentar-se e dizer: “O problema talvez seja eu...”
Centrando-se no derradeiro dia de vida de Pasolini, o seu filme evoca Salò ou os 120 Dias de Sodoma, um objecto cinematográfico que lhe valeu muitos ataques; houve quem considerasse que a “transposição” da obra do Marquês de Sade para o fascismo italiano não fazia sentido.
Eram acusações deslocadas e absurdas. Ele viveu durante o fascismo, o irmão era um “partisan” que foi assassinado... Pasolini deixou uma obra visionária, de uma clareza admirável e, ao mesmo tempo, com um invulgar poder de abstracção. Aliás, Salò é quase um documentário. O que é que as pessoas pensam que os fascistas fizeram? Assassinaram seis milhões de pessoas!
Quase se pode dizer que vemos Pasolini mais como escritor do que como cineasta. Qual foi a importância dos seus escritos na elaboração do filme?
Foi essencial, em particular a leitura dos derradeiros trabalhos. Num certo sentido, foi mesmo importante que fossem trabalhos inacabados, confrontando-nos com interrogações dramáticas — por exemplo, até onde poderia ter ido um livro como Petróleo? E o argumento que ele não concluiu?
Afinal de contas, que sabemos sobre ele? É o tipo de pessoa que nem sequer os melhores amigos sabiam como ele era. E sabiam que não sabiam — é esse o belíssimo mistério de Pier Paolo.
E quanto a si, aceita definir-se como um cineasta independente?
É preciso ser independente, no sentido em que é importante pôr em cada filme a nossa individualidade, a nossa visão — a minha maneira é... a minha maneira, não há ninguém como eu.
Há algum cineasta ou cineastas que siga, em particular?
Não sigo ninguém, estou ocupado a fazer os meus filmes. Houve uma altura da minha vida em que via filmes e mais filmes, como um viciado. Esse período acabou: ando a fazer filmes, não a vê-los. Não vejo televisão, embora acompanhe a minha equipa de futebol, os New York Jets. E leio. E toco guitarra.
Entretanto, Welcome to New York continua inédito nos EUA.
É uma batalha que estamos a travar, porque não estou disposto a abdicar do direito à montagem final. E ninguém vai tocar na “porcaria” do meu filme!