domingo, novembro 09, 2014

À espera de Orson Welles

De uma maneira ou de outra, The Other Side of the Wind, o filme "perdido" de Orson Welles, vai ser um dos grandes acontecimentos cinematográficos do próximo ano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Novembro), com o título 'O melhor filme de 2015?'

Um dos efeitos mais perversos da banalização televisiva do cinema, escandalosamente arredado dos horários nobres, é o esvaziamento da sua história. E o consequente ataque a qualquer sensibilidade cinéfila — porque a cinefilia começa na consciência de que o cinema tem uma história.
Há dias, tivemos mais um exemplo das singularidades dessa história e da sua dinâmica, não como uma linha recta de significação unívoca, mas sim uma paisagem de muitos cruzamentos e ziguezagues. Assim, de acordo com um artigo do New York Times (28 Out.), o derradeiro filme de Orson Welles, The Other Side of the Wind, poderá, finalmente, ser visto em 2015.
Infelizmente, vivemos um tempo em que qualquer banalidade dita por um concorrente da Casa dos Segredos adquire maior ressonância mediática que uma notícia em torno do nome de Orson Welles... A atrevida ignorância da cultura televisiva dominante poderá mesmo insinuar a pergunta letal: mas, afinal, quem é Orson Welles?
Não receemos, por isso, ser panfletários, apelando ao que resta da sensibilidade cinéfila. Sendo o realizador de O Mundo a Seus Pés (1941) um dos autores decisivos para compreendermos toda a modernidade cinematográfica, não tem nada de abusivo considerar, desde já, que a revelação de The Other Side of the Wind será um dos grandes eventos cinematográficos de 2015 — a sua estreia poderá acontecer no dia 6 de Maio, data em que o actor e cineasta completaria 100 anos (Welles faleceu em 1985).
Peter Bogdanovich
Como muitos outros projectos do seu autor, também The Other Side of the Wind sofreu os efeitos das mais diversas dificuldades de financiamento. Na prática, Welles filmava nos intervalos das produções em que ia participando como actor (ao longo do período 1970-76), para isso contando com a cumplicidade de um elenco que integrava dois cineastas, John Huston e Peter Bogdanovich — o primeiro interpreta um realizador que, ao tentar concluir um filme, se vê envolvido num conflito com um grande estúdio de Hollywood, tema que, por certo, integrará ecos de muitas atribulações do próprio Welles (que começaram logo com a sua segunda longa-metragem, O Quarto Mandamento, rodada um ano depois de O Mundo a Seus Pés).
Através de Oja Kodar, companheira e colaboradora de Welles, conheciam-se fragmentos em que era possível detectar, no mínimo, um ousado trabalho de montagem. Seja como for, aquilo que agora se anuncia decorre de uma reorganização de todo o material filmado, tendo por base os muitos apontamentos deixados por Welles — Bogdanovich e o produtor Frank Marshall são os coordenadores de tão delicada tarefa.
Nos últimos anos de vida, Welles fez tudo o que pôde para concluir The Other Side of the Wind. Bogdanovich recorda mesmo que, um dia, durante um almoço, Welles lhe disse solenemente: “Quero que me prometas que, se alguma coisa me acontecer, hás-de conseguir acabar este filme.”