terça-feira, agosto 12, 2014

Marilyn Monroe nunca existiu

MARILYN MONROE (1926-1962)
Será que há espectadores que já não têm qualquer interesse pelas singularidades de actores e actrizes? Para onde foi a paixão cinéfila? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Agosto), com o título 'O cinema já não tem estrelas?'.

Notícia recente: o canal de televisão Lifetime, sediado em Nova Iorque e especialmente orientado para temas no feminino, anunciou a produção de uma mini-série sobre Marilyn Monroe, ainda sem elenco estabelecido. Chamar-se-á apenas Marilyn e tem como base o livro de J. Randy Taraborrelli, The Secret Life of Marilyn Monroe (2010), considerado um dos mais elaborados no tratamento das relações da actriz com a mãe mentalmente doente e também na exposição dos bastidores da sua relação com o clã Kennedy. Stephen Kronish, argumentista e produtor executivo do novo projecto, trabalhou, precisamente, na série The Kennedys (2011), com Greg Kinnear no papel de John Kennedy.
Assim se confirma o invulgar apelo mitológico da figura de Marilyn. As suas memórias persistem como um manancial de factos, enigmas e símbolos capazes de convocar tanto as ambivalências do feminino como as alegrias e traumas de Hollywood. Para nos ficarmos por uma referência próxima, lembremos a composição de Michelle Williams em A Minha Semana com Marilyn (2011), de Simon Curtis, centrada na rodagem de O Príncipe e a Corista (1957), de e com Laurence Olivier. Entretanto, o realizador Andrew Dominik está a trabalhar numa produção de Brad Pitt, Blonde, baseada no romance homónimo de Joyce Carol Oates, com Jessica Chastain no papel de Marilyn.
Seja como for, é difícil não detectar nestas intermináveis derivações de luto cinéfilo algo que está para além da revelação mais ou menos “escandalosa” de detalhes enraizados numa relação obsessiva com o passado. Há, aqui, também uma perversa (e, de alguma maneira, desesperada) lógica de compensação em relação à carência de estrelas na maior parte das produções contemporâneas que lideram os mercados.
Em boa verdade, mesmo as aventuras de um resistente como Tom Cruise passaram a ser, do ponto de vista industrial, investimentos menos interessantes do que qualquer avatar de jogo de vídeo, protagonizado por um “Homem-Aranha” mais ou menos angustiado ou, então, explorando a atitude de auto-paródia que encontramos nos heróis unidimensionais do recente Guardiões da Galáxia. Que estrelas tais filmes têm para oferecer? Nenhumas, a ponto de os elementos das suas gigantescas campanhas (trailers, cartazes, etc.) nem sequer citarem os respectivos actores (muitas vezes, há que reconhecê-lo, reduzidos à função de marionetas engolidas pela maquilhagem mais ou menos digital com que se apresentam cobertos no ecrã).
Chegamos, assim, a um estranho esvaziamento cultural: há muitos espectadores (des)educados para entenderem o cinema como mera proeza tecnológica, mais ou menos paródica, alheia ao factor humano, quer dizer, aos actores e actrizes. E se esses mesmos espectadores, um dia destes, já não souberem quem foi Marilyn Monroe, viverão, por certo, o seu desconhecimento sem culpas — e nem repararão que, a seu lado, o cinema morreu.