segunda-feira, agosto 11, 2014

Banco "bom" / banco "mau"

ALFRED HITCHCOCK
Fotograma de Os Pássaros (1963)
1. A crise no BES fez entrar na gíria social uma nova dualidade mediática: o "bom" e o "mau" servem, agora, para classificar a esquizofrenia de um banco que, pelos vistos, mexe não apenas com os dinheiros do cidadão comum, mas com o edifício económico-político de todo um país.

2. Pergunto-me, por isso mesmo, até que ponto muitos membros da classe política e comentadores da mesma área (por vezes, coincidindo na mesma pessoa pública) alguma vez reflectiram sobre o efeito que a sua linguagem cifrada desencadeia no referido cidadão comum. Quem é que, neste país, em particular na agitação pueril do espaço televisivo, ainda pensa a política como uma linguagem? E a economia como um sistema de significações?

3. Isto porque, vale a pena recordá-lo, basta um crítico de cinema pronunciar-se sobre qualquer coisa menos óbvia — por exemplo: a erotização simbólica de muitos grandes planos de Hitchcock, ou o modo como a herança da montagem de Eisenstein se reflecte na obra de Godard —, para de imediato ser alvo de acusações de "pretensiosismo" (e estou a ser pudico na evocação de tais acusações), devidamente multiplicadas pela avalancha de estupidez que cobriu muitas zonas das chamadas "redes sociais".
JEAN-LUC GODARD
JLG/JLG (1994)
4. Em contraponto, muitos dos referidos analistas políticos parecem acreditar que os seus rituais de purificação moral — entre a "bondade" de algum dinheiro e a "malvadez" de outro — produz no espaço da informação outra coisa que não seja o recalcamento da pergunta que o senso comum não pode deixar de formular. A saber: porque é que vivemos num país em que se podem lançar suspeitas difamatórias em nome de algumas escassas centenas de euros, enquanto que o "desaparecimento" no éter de alguns milhares de milhões de euros — qualquer coisa que começa por um algarismo "A" e, depois, se estende para A.000.000.0000 de euros — é tratado como um fascinante imbróglio de teoria económica?

5. O senso comum pergunta. E porque tende a gerar automatismos colectivos, o mesmo senso comum responde, implícita ou explicitamente, com a demonização de toda a política e toda a economia. É uma simplificação abusiva? Claro que sim — ninguém pretende sugerir que o senso comum consegue mais do que multiplicar a sua própria incapacidade de passar para além da superfície das coisas. Acontece que tal demonização contribui, ainda mais, para a desagregação dos nossos laços comunicacionais e sociais — mesmo quando somos protegidos por analistas que se assumem como oráculos das catástrofes de um futuro que, perversamente, já aconteceu.