sábado, agosto 09, 2014

Amor e outras monstruosidades

Resumir Daddy Love é, inevitavelmente, atrair um cliché. Há um menino de cinco anos, Robbie, que durante uma agitada deambulação com a mãe (ao sair de um centro comercial, procurando o lugar em que o carro ficou estacionado) é raptado por um homem, o reverendo Chester Cash, que não é reverendo e talvez nem se chame Cash... Qual o cliché? A noção dramática segundo a qual vamos assistir ao relato de um caso de pedofilia em que, numa angústia crescente, seremos convocados para partilhar o desejo de fuga de Robbie... Claro que tudo isso está lá e o mínimo que se pode dizer é que Joyce Carol Oates continua a ser a genial analista de todos os estados de alma que a dimensão humana possa conter. Mas Daddy Love é muito mais que um perturbante thriller.
J. C. Oates
Estamos perante uma tragédia visceral, de algum modo condensada na terrível ambivalência do título. Não se trata, de facto, de descrever um "amor de papá", mas sim de retratar uma personagem que, na sua violência sem recuo, se teatraliza como "Papá Amor". No interior dessa violência (física e emocional), a tentativa de normalização do "filho" Robbie — aliás rebaptizado Gideon — aproxima o amor, ou a sua máscara, de uma prática de sucessivas e metódicas monstruosidades. Daí que o cliché também não funcione para o entendimento da personagem de Robbie. Com apenas cinco anos (a narrativa acompanhá-lo-á até aos onze) o desejo de fuga que nele ansiamos carece de consistência: porque ele próprio terá de construir uma ideia de fuga e, sobretudo, porque a descoberta do desejo se apresenta como um processo tão premente quanto policiado.
No limite, Daddy Love é uma parábola sobre a crua contiguidade de todos os territórios — amor e ódio, impulso de vida e pulsão de morte — em que a identidade humana enfrenta o desafio de harmonizar as contradições do ser. E do não ser. Eis a questão.