Os tempos heróicos do cinema em película de 35mm tendem a ser uma memória anacrónica que, em boa verdade, muitos espectadores de cinema passaram a desconhecer. Onde é que esses espectadores vêem, então, cinema? Na televisão... A consolidação de um novo paradigma de consumo corresponde ao triunfo de uma cultura sem cinefilia — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (8 Agosto).
Espantosos números divulgados num estudo da revista britânica Screen Daily. Em causa está o consumo de filmes nos canais de televisão. Assim, ficamos a saber que, ao longo de 2013, nos televisores do Reino Unido, houve nada mais nada menos que 59.542 difusões de filmes. E que as respectivas emissões renderam 2,7 mil milhões de dólares (contas redondas: 2 mil milhões de euros).
Há, aqui, desde logo, um gigantismo que relativiza a própria “crise” financeira da indústria, em particular da produção de língua inglesa. Assim, quando se fala da rarefacção de espectadores nas salas, importa relembrar um factor conjuntural que, aliás, há alguns anos, em edição lançada durante o Festival de Cannes, foi também revelado pela revista Screen (nesse caso, na sua edição “International”). A saber: para a esmagadora maioria das produções cinematográficas, o rendimento posterior à passagem pelas salas representa mais de 50% das receitas totais de cada título.
O estudo acrescenta uma contundente estatística: considerando apenas (repito: apenas) os canais abertos, cada cidadão britânico viu na televisão, durante o ano passado, 53 filmes. Mais do que um dado decisivo nas actuais relações entre estruturas de produção e sistemas de difusão, trata-se do triunfo de um novo paradigma que, sendo comercial, é também, inevitavelmente, cultural: aquilo que herdámos sob a designação industrial e artística de “cinema” tornou-se, nos dias que correm, um fenómeno predominantemente... televisivo!
Podemos sublinhar a multiplicação de possibilidades: cada espectador desfruta, em princípio, de uma oferta maior e mais diversificada. Mas podemos também lamentar a perda de referências: há já uma ou duas gerações de espectadores que foram (des)educados numa sistemática indiferença pelas peculiaridades estéticas e sociais das salas escuras. Na pior das hipóteses, diremos que são cada vez menos os espectadores genuinamente cinéfilos — esse vazio cultural pode vir a ser muito negativo para as contas da televisão.