O projeto nasceu de uma vontade de retratar uma realidade e de uma advertência. A realidade era a memória de esquadrões da morte que, há quatro décadas, mataram milhares de militantes e simpatizantes comunistas em Sumatra (Indonésia) sob um regime de impunidade que ainda hoje faz dos perpetradores dessas mortes figuras de tranquilo dia-a-dia. Joshua Oppenheimer soube das histórias ao caminhar por aqueles lados, as memórias do terror ainda vivendo entre os habitantes da região. Queria filmar essas memórias. Mas, advertido, optou por falar com os perpetradores e não com familiares e amigos de sobreviventes. E, para seu espanto, deram o sim ao desafio e falaram para a câmara...
Em dezembro, quando O Acto de Matar foi editado no Reino Unido o Blu-ray com este filme, que acabaria por ser eleito pela Sight + Sound como filme do ano, escrevi aqui: “O desafio lançado a esses antigos agentes de morte foi o de recriarem aquilo que aconteceu para as câmaras. Um deles, antigo vendedor de bilhetes de cinema e um auto-proclamado 'gangster' (inspirado pelos modelos que via nos filmes de Hollywod), aceita inclusivamente que se filmem as visões que lembra dos seus sonhos (mais pesadelos). Ele, que só pela suas mãos terá morto cerca de mil pessoas (estrangulando-as com arame para evitar “sujar” com sangue o local onde ocorriam as mortes), relata o que acontecia. Com ele descobrimos outros antigos líderes deste grupo, um deles hoje editor de um jornal local. Muitos destes grupos geraram um grupo paramilitar com ligações ao poder, ministros e altos funcionários surgindo nas suas reuniões e paradas. Numa momento particularmente representativo do que ali sucedeu e do modo como a violência exercida saiu impune de todo este processo, há quem comente que existe a convenção de Genebra, mas que ali há uma “convenção” de Jakarta. Fica claro que vivemos no mesmo planeta. Mas não no mesmo mundo.”
Convém recordar que o filme - que surge nas nossas salas uma semana depois do não menos impressionante A Imagem Que Falta - teve estreia entre nós na edição de 2013 do IndieLisboa. Entre as imagens acompanhamos um inesperado mergulho dos perpetradores das mortes em encenações que eles mesmos idealizam e protagonizam. Estas recriações sugerem contrastes curiosos entre um aprumado e garrido estetismo e a crueza dos atos cometidos. Curiosa é a lógica de construção narrativa operada por Oppenheimer, que coloca depois os “encenadores” (e muitas vezes atores nas suas próprias encenações) a ver os “brutos” decorrentes da rodagem, os comentários das memórias antigas somando-se ao confronto com as imagens e as sensações que desencadeiam, despertando num dos casos um regime de culpa que, mesmo assim, oficialmente, continua impune.