domingo, março 03, 2013

Políticos num palco de ópera (parte 3)

Foto: Ken Howard / Metropolitan Opera
Este texto é parte de um artigo que foi originalmente publicado na edição de 16 de fevereiro do suplemento Q., do Diário de Notícias, com o título: Richard Nixon e Mao Tse-Tung: Um choque de titãs num palco de ópera. 

Quando John Adams reconheceu que a sugestão lançada por Sellars em 1983 era uma ideia a trabalhar, entendeu que estava chegada a altura de criar uma nova mitologia no quadro da história contemporânea, tal e qual ele mesmo o confessou em entrevista a Elena Park, para a Playbill, republicada agora no booklet da edição em DVD e Blu-ray da produção de Nixon In China que o Met apresentou. John Adams defende ali que os americanos vivem obcecados com a figura do Presidente porque “é aquele que encarna a psique, a alma nacional. Tanto o lado negro – a paranoia e tendência para abusar do poder – como o idealismo e curiosidade”, sublinha John Adams (27), para quem tanto Nixon como Mao “eram como personagens de cartoons políticos criadas pelos próprios”. O compositor descreve Mao como um homem culto, literato, que talhou a persona política do camponês-filósofo de pés bem assentes na terra e que era também um estratega militar. Já Nixon, como ele mesmo o diz, “imaginava-se como o representante da ‘maioria silenciosa’ da América média” (28).

John Adams imaginou assim Nixon In China como traduzindo um choque de ideologias. No booklet desta nova edição explica ainda que “Nixon representava a economia de mercado, a ideia de que não há nada na vida que não tenha um preço”. Mao era, por seu turno, a voz “do Estado social in extremis, a ideia de que ninguém tinha de passar fome e ningém devia tornar-se nojentamente rico, mas que, se não seguir o plano, é dispensável”. A ópera foca, como sublinha, “um tempo em que o comunismo era ainda visto como a principal ameaça aos valores liberais ocidentais”(29).

Segundo sugestão de John Adams, que queria um libreto escrito por um poeta, Sellars sugeriu que chamassem Alice Goodman, uma antiga colega dos seus dias passados em Harvard. O primeiro encontro a três aconteceu, curiosamente, no Kennedy Centre, em Washington D. C.. Adams recorda que, sob a administração Reagan e sob o “gosto do presidente”, a presença de Sellars e de ideias para um “público sofisticado” faziam dificilmente do American National Teatre o local ideal para o trabalho do encenador, que havia sido nomeado para aquele lugar em 1984 e, por isso, estava então frequentemente na capital. Mas preparar “a história de Nixon in China dentro das paredes do poder” trazia-lhe um “prazer subversivo”(30).

Sendo a visita de Nixon à China aquilo que Adams descreve como um acontecimento encenado para os media, não faltavam momentos nem temas a que a ópera poderia recorrer. Por um lado, o momento representava o que o compositor vê como um encontro de Titãs: Nixon e Mao, representando assim duas das mais evidentes forcas antagónicas das grandes ideologias políticas do século XX. A figura de Nixon é retratada por Alice Goodman como sendo uma pessoa vaidosa, visionária, mas sempre assombrada por suspeições. Mao, por sua vez, nasce das leituras dos seus poemas e do famoso Livro Vermelho (31).

A composição musical da figura de Nixon resultou de uma questão feita por John Adams a si mesmo quando procurou a linguagem que mais bem poderia retratar a personalidade do estadista. Nasceu assim a ideia de evocar as memórias do som das big bands dos anos 30 e 40 (a época em que Nixon e Pat se conheceram) que, juntamente com heranças e assimilações do minimalismo, definem os caminhos musicais que conduzem os quadros da encenação desta viagem histórica de 1972. Por seu lado, mais do que citar a música chinesa nas situações em que isso poderia fazer sentido, Adams observa em Hallelujah Junction que, ao ver registos de bailados comunistas chineses, reconheceu na música que os suportava sinais de “más imitações da música de bailados francesa e russa”(32). Quanto à orquestração, Adams usa no seu livro uma palavra que a traduz magnificamente: tecnicolor.

Pat Nixon, a primeira dama, é a mulher doméstica do ideal republicano, como Adams a caracteriza. Submete-se ao marido, tem um sorriso genuíno mas que esconde uma dor interior. O oposto, para o compositor, de Jiang Qing, a mulher de Mao, que deu os primeiros passos profissionais como atriz de cinema, juntando-se depois ao Partido Comunista Chinês e transformando-se numa das grandes forças da Revolução Cultural.

Alice Goodman, em entrevista à New Yorker em novembro de 1987, explicou que, ao definir o perfil da figura do presidente americano pensou “muito no amor de Nixon pela história e, apesar de tudo, na sua crença na paz e no progresso”. A autora do libreto sentiu que cada personagem na ópera tinha de ser o mais eloquente possível: “A qualidade heroica da obra como um todo seria determinada pela eloquência com que cada personagem exporia os seus argumentos. [...] Nixon era uma pessoa emocionalmente reprimida e socialmente desajeitada, mas tinha uma noção muito aguda do papel que representava na história. Na ópera fiz que falasse ou cantasse com uma combinação de grandiloquência pomposa e de coloquialismo cru, traço dele do qual não tínhamos conhecimento, até surgirem as fitas relacionadas com o caso Watergate”, cita Lauro Machado Coelho, no livro A Ópera nos Estados Unidos.

Alice Goodman contou depois que fez projeções de si mesma durante o processo de criação das personagens de Nixon, Pat, Kissinger e Madame Mao. Já as vidas interiores de Mao e Chou En-lai, não as encontrando em si mesma, procurou-as em figuras que lhe eram próximas. Peter Sellars sugeriu elementos característicos de óperas clássicas, nomeadamente o coro que abre o primeiro ato, a cena heroica da chegada de Nixon ou o “duelo” de brindes no banquete do final do primeiro ato. Adams, Sellars e Goodman, todos eles cederam entre si para encontrarem no fim uma voz comum aos três. Na entrevista a Thomas Hampson, que vemos na nova edição em Blu-ray e DVD, o encenador Peter Sellars explica mesmo que Nixon In China foi um espaço de confronto democrático entre todos os criadores envolvidos, juntando aos três ainda o trabalho do coreógrafo Mark Morris.

Timothy A. Johnson, autor de John Adams’s Nixon in China: Musical Analysis, Historical and Political Perspectives, um livro exclusivamente dedicado a uma análise e interpretação desta ópera, Nixon In China é uma obra que reflete o registo histórico dos acontecimentos mas que ultrapassa as fundações da história. Através das suas relações musicais, a ópera faz o que descreve como uma “interpretação dos acontecimentos que estavam fora ou surgiam de forma apenas latente” nas imagens e nos noticiários da visita de Nixon à China. Citando Thomas May, Timothy A. Johnson sugere mesmo que Adams, Sellars e Goodman conseguiram encontrar “um lugar para o poder da mitologia entre figuras da história contemporãnea” (33).


(27) in booklet do Blu-Ray/DVD da produção do Met para Nixon in China.
(28) ibidem
(29) ibidem
(30) in John Adams, Hallelujah Junction (Faber & Faber, 2008), pág. 136.
(31) O célebre Livro Vermelho com frases de Mao Tsé-tung.
(32) in John Adams, Hallelujah Junction (Faber & Faber, 2008), pág. 141.
(33) in Timothy A. Johnson, John Adams’s Nixon in China: Musical Analysis, Historical and Political Perspectives (Ashgate Publishing Limited, 2011), pág. 5.


(Continua)