sexta-feira, novembro 30, 2012

Para redescobrir Hitchcock

THE RING (1927)
A revelação de uma cópia restaurada de um clássico mudo de Alfred Hitchcock reflecte uma conjuntura precisa: há novas atitudes (e novas estratégias industriais e comerciais) para lidar com as memórias do cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Novembro).

Por estes dias, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (entidade que atribui os Oscars) apresenta em Los Angeles a cópia recentemente restaurada de um dos filmes mudos de Alfred Hitchcock: The Ring (1927), um melodrama tendo por pano de fundo o universo do boxe. Marcada para o Beverly Hills Theatre (29 Nov.), a projecção deste clássico possui um exemplar valor simbólico. A saber: a memória cinéfila apenas pode persistir e revalorizar-se através de um confronto directo com as obras que, pelas mais diversas razões, ajudam a definir os temas, as tendências e as próprias fronteiras da história do cinema.
Em boa verdade, o evento transcende qualquer relação banalmente pitoresca com o “passado”. E pode simbolizar a importância do labor de todos os arquivos fílmicos e cinematecas (incluindo, claro, no caso português). Desde logo porque envolve diversas entidades cuja simples identificação nos pode ajudar a perceber a internacionalização deste misto de urgência e paixão com que passou a ser encarada a preservação do património cinematográfico. Naturalmente, a recuperação de The Ring tem as suas raízes na pátria do cineasta. Mais concretamente, a nova cópia integra o projecto do British Film Institute designado por “Rescue the Hitchcock 9” (à letra: 'salvem os 9 de Hitchcock'), visando a recuperação dos seus nove títulos mudos. A sua estreia ocorreu recentemente no Festival de Londres, com uma nova partitura musical composta pelo músico de jazz e hip-hop Soweto Kinch. O financiamento do restauro envolveu diversas instituições, incluindo o StudioCanal (entidade americana de raízes francesas), a Film Foundation (fundada por Martin Scorsese) e a Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood (responsável pela atribuição dos Globos de Ouro).
Na prática, isto significa que as mais diversas entidades – umas ligadas aos circuitos especificamente culturais, outras com importantes ramificações industriais e comerciais – estão a valorizar a possibilidade de os públicos contemporâneos acederem a um conhecimento real do património cinematográfico. E utilizo a palavra “real” como clara sugestão de contraste, nem que seja por ironia, com as alternativas “virtuais” (computador, Net) hoje em dia tão abrangentes e, por vezes, tão simplistas.
De facto, creio que aquilo que está em jogo excede a mera questão museológica da defesa e conservação dos objectos fílmicos. Trata-se também de revalorizar a condição clássica de espectador – e de espectador que vê filmes em salas escuras. Nos tempos que correm, marcados pelo tratamento do cinema como “conteúdo” mais ou menos descartável de muitas opções televisivas de programação, este é um tipo de atitude que resiste à banalização da escrita e do património cinematográfico. Heroicamente. Didacticamente.

20 anos a falar de "Sex"

Um dos princípios mais rasteiros das "polémicas" em torno das imagens das estrelas não é o seu empenho em reduzir tudo ao gratuito... Basta-lhes mentir. O Daily Mail, por exemplo: para comentar a imagem que tem servido de promoção ao novo perfume de Madonna, Naked, o tablóide "denuncia" o facto de ter sido fabricada a partir de uma fotografia do livro Sex.


Que publicações como o Daily Mail mostrem grande espanto pelo facto de as imagens das estrelas serem tratadas, depuradas e manipuladas, eis uma questão pitoresca: digamos que é uma "descoberta" que chega com cerca de um século de atraso, mas não é grave... Pelo menos desde Jean Harlow (1911-1937) que uma estrela é, afinal, um ser que, entre outras coisas, vive disso mesmo: uma política formal e simbólica de permanente reconversão e diversificação do património iconográfico que corporiza, sustenta e protagoniza.
Acontece que a fotografia "copiada" não é de Sex, mesmo se é verdade que também é assinada por Steven Meisel, o fotógrafo que fez o livro com Madonna. Dá-se o caso de se estarem a assinalar vinte anos da edição de Sex, pelo que dá jeito proclamar semelhante falsidade...


Este 20º aniversário faz-nos recordar a peculiar batalha jornalística que, em Outubro/Novembro de 1992, envolveu o aparecimento de Sex, religiosamente guardado na sua gélida embalagem metalizada. De facto, para alguns tratava-se de empolar o facto de Madonna ter decidido mostrar-se... "ao natural" (entenda-se: trabalhando com imagens de nus). Para outros, entre os quais me incluo, o que estava em jogo era bem diferente. Era mesmo a discussão, ao mesmo tempo visual e cultural, da nudez como um código que, em boa verdade, não tem nada de natural.
Dito de outro modo: Sex não é um livro confessional, mesmo se é um livro que explora as fronteiras do que designamos por intimidade. Aliás, os mais precipitados, por certo vidrados nas representações que queriam "denunciar", nem se deram ao trabalho de observar como o labor das imagens é, como sempre, em Madonna, indissociável de um sofisticado exercício de escrita. Ela o diz, logo a abrir o livro: "(...) E a propósito: qualquer semelhança entre as personagens e os acontecimentos retratados neste livro e pessoas e acontecimentos verdadeiros não é apenas pura coincidência. É também ridículo. Nada neste livro é verdade. Fui eu que inventei tudo."
Semelhante artifício não exclui o cristalino reconhecimento de que passam por aqui imagens e imaginações que desafiam muitas certezas, a começar pelas certezas que os próprios protagonistas poderiam alimentar através das suas poses fotográficas. No final de Sex, o longo texto de agradecimento de Madonna conclui mesmo com uma terna referência ao seu fotógrafo: "Acima de tudo, obrigado a Steven Meisel por não ter sentido medo quando eu senti."
O escândalo continua a ser esse: o de o leitor reconhecer, não o choque da nudez (qual choque?...), mas a nitidez do medo que se encena. E a cumplicidade com o próprio medo de quem olha. Eu. Tu.


>>> Os 20 anos de Sex na revista Clash.

quinta-feira, novembro 29, 2012

Massive Attack, opus 1 (segunda vez)

As origens do trip hop. O Bristol Sound. Um novo capítulo musical, electrónico & meditativo...
Enfim, a história não se repete, mas pode ser revisitada. Daí que os Massive Attack lancem agora uma nova versão, remix/remaster, do seu histórico álbum de estreia: Blue Lines (1991). Para recordar um daqueles momentos em que, de facto, sentimos a história — e as suas sonoridades — mudar de sentido(s).

quarta-feira, novembro 28, 2012

O envelhecimento segundo Clint Eastwood

De acordo com a lógica de trabalho da sua produtora, Malpaso, Clint Eastwood deu agora uma oportunidade de realização a Robert Lorenz, um colaborador regular, nomeadamente na área da produção: o resultado é Trouble with the Curve/As Voltas da Vida, um retrato íntimo do mundo baseball — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Novembro), com o título 'A arte de envelhecer segundo Clint Eastwood'.

Clint Eastwood está de regresso aos ecrãs das salas escuras como intérprete principal de As Voltas da Vida, sob a direcção de Robert Lorenz. É um reencontro atravessado pelas mais variadas emoções: hoje em dia, com os seus joviais 82 anos, ele é, sem qualquer dúvida, um dos nomes mais respeitados do cinema americano; em boa verdade, simboliza toda uma dimensão lendária de Hollywood, congregando as funções de actor e realizador, impondo-se como símbolo de resistência humana e paradigma do espectáculo.
Curiosamente, a carreira de Eastwood como realizador, iniciada há mais de quatro décadas, em 1971 (com esse insólito melodrama negro, centrado num locutor de rádio, que é Play Misty for Me/Destinos nas Trevas), fez com que, a pouco e pouco, se tornasse um actor quase exclusivo dos seus próprios filmes. A sua interpretação em As Voltas da Vida, assumindo a personagem de um “olheiro” de jovens jogadores da baseball, veio mesmo interromper um longo período em que apenas surgiu em títulos que também dirigiu: a última vez que integrara o elenco de um filme de outro realizador ocorrera em 1993. Além do mais, em anos recentes, depois de Gran Torino (2008), Eastwood realizou três filmes em que não participou como actor: Invictus (2009) Hereafter – Outra Vida (2010) e J. Edgar (2011).
Quando foi anunciada a produção de As Voltas da Vida, alguns rumores garantiam que se tratava de uma derradeira escolha de Eastwood. Ou seja: ele assumiria esta personagem como a última interpretação da sua carreira, quase um testamento simbólico, passando a dedicar-se apenas à realização. Nada disso foi posteriormente confirmado, mas é inevitável reconhecer que há na sua personagem um tom de desencanto e paradoxal ironia que não pode ser separado dessa arte difícil, mas incontornável, que consiste em saber envelhecer. Nesta perspectiva, pode mesmo dizer-se que As Voltas da Vida reencena o carácter implacável do tempo, tema dramático que pode ser claramente identificado na trajectória de Eastwood pelo menos desde que interpretou e dirigiu Bronco Billy (1980), centrado na decadência de uma vedeta de um circo temático sobre o velho Oeste.
Curiosamente, As Voltas da Vida é também um filme que ilustra a longevidade e a consistência de Eastwood na área da produção. Isto porque se trata de mais um título com chancela da sua casa de produção, a Malpaso (como sempre associada aos estúdios da Warner), estreando na realização o nome de Robert Lorenz. Em todo o caso, Lorenz está longe de ser um principiante. Depois de ter trabalhado como assistente de Eastwood, desde As Pontes de Madison County (1995), transformou-se numa figura fundamental da dinâmica da Malpaso, das rodagens até ao marketing. Veio mesmo a assumir várias vezes as funções de produtor, de Mystic River (2003) até J. Edgar. E talvez não seja exagero supor que, graças à direcção de Lorenz, Eastwood possa vir a ter mais uma nomeação para o Oscar que nunca ganhou: o de melhor actor.

Nativos de Los Angeles

Chamam-se Local Natives, são de Los Angeles e preparam-se para lançar em 2013 o seu segundo álbum de originais. Um aperitivo fica na forma de Breakers, novo single que apresentam no formato de um teledisco realizado por Jaffe Zinn em colaboração com os próprios Local Natives.

Novas edições:
Lana del Rey, Paradise EP


Lana del Rey 
“Paradise EP” 
Polydor/ Universal Music
4 / 5

Há pouco mais de um ano o single que juntava Video Games e Blue Jeans colocava Lana del Rey como uma das promessas de 2011. Mas quando, em inícios de 2012 entrou em cena Born To Die, as opiniões dividiram-se, as críticas mais negativas apontando-a como se fosse fantoche fabricado por uma editora para vender discos... Sem a considerar como tal, a verdade é que pela sua música (e seu percurso pessoal) passam ideias de artifício e de reconstrução de si mesma que, convenhamos, têm história antiga nos espaços da música popular. E isso é mau? Lembro apenas (e uma vez mais) que Scott Walker começou por cantar Pretty Girls Everywhere numa primeira geração teen dos Walker Brothers e que David Bowie foi Davie Jones numa bandinha mod de segunda linha antes de se reinventar e ser quem acabou por ser... E, sem querer comparar Lana a estes dois “deuses”, sublinho apenas que mudar nunca fez mal a ninguém. Mudar de nome, mudar de linha musical, até de colocação vocal... Porque não? Realmente frágil foi, é verdade, a sua constrangedora prestação no Saturday Night Live que tanto deu que falar, mas quem a viu ao vivo no Meco este ano reparou que, entretanto, ganhou outra confiança e segurança vocal na hora de cantar ao vivo (e se há “culpa” nesta história, foi de quem a resolveu levar para um espaço como daquele programa claramente antes do tempo certo para o fazer, ou já se tinham esquecido que a pressa é inimiga do bom?). Confesso ter mais dificuldade lidar com a coexistência no mesmo espaço daquele sentido de encantamento Hollywoodesco, sofisticado e melancólico, com episódios em algumas letras que parecem coisa de aluna de liceu entre amigas. Mas, enfim, deixe-mo-la ter os 26 anos que tem, confiando que a tempo arrumará essas expressões e imagens (que destoam com a eloquência cénica e lírica que domina o que nos mostra) na caixinha das memórias. Quase um ano depois, Lana del Rey saltou do patamar de promessa em berço próximo da cultura indie para o mainstream. Coisa que incomoda sempre muita gente, sobretudo os que aplicam uma certa ideologia à la talibã na sua maneira de lidar com a música e no modo de entender o gosto e opções diferentes nos outros... Lana fez-se uma das vozes mais notadas do ano. Dificilmente reunirá os céticos com os admiradores em torno do que daqui em diante fará. Já vimos esta história... (e vamos voltar a ver)... E mais não tem senão se seguir o seu caminho. É o que faz com um EP – que entre nós surge integrado num repackage do álbum deste ano, apresentado como Born To Die – Paradise Edition – no qual apresenta oito novas gravações, entre as quais a versão de Blue Velvet que recentemente usou numa campanha publicitária. Se nessa versão se acentuam as afinidades com os universos Lynchianos de que a música de Lana del Rey dava já sinal desde há um ano e em I Sing The Body Eletric (restando saber se aqui cita Walt Whitman ou Ray Bradbury) presta homenagem a Elvis e Marilyn, as restantes composições que nos mostra em Paradise não são senão expressões naturais de continuidade face ao que nos deu a ouvir em Born To Die. Resistindo ao que poderia ser um caminho mais pop que podíamos ler nas entrelinhas de um National Anthem ou Lolita, optou por manter o alinhamento no patamar do mood central definido pelo disco que editou em janeiro. Afinal estamos num EP complementar a uma ideia e não, para já, entregues a uma qualquer tentativa de partida para novo rumo... Com momento central em Ride, onde conta com Rick Rubin na produção, o EP é assim como se fosse um encore para o que Born To Die colocou em cena. Quem a vê como maquinação de uma indústria que fabrica estrelas, vai fazer questão de demolir a coisa com requintes de malvadez. Quem nela reconhece antes uma invulgar estrela feita (sim, porque já o é), que celebra no presente a nostalgia de um glamour desaparecido nesta idade em que a cultura online privilegia a construção de pequenos nichos e do talhar do gosto individual (por oposição aos efeitos da cultura blockbuster do século XX) vai reconhecer que aqui moram oito novos motivos para cimentar uma voz que marcou 2012. O futuro dirá, a seu tempo, se daqui nascerá ou uma voz maior (e uma carreira)... Para já, o ciclo iniciado em 2011 com Video Games e Blue Jeans encerra de forma coerente. Uns vão gostar do caminho que tomou, outros nem por isso. E ainda bem, que as unanimidades metem medo e contrariam um dos valores mais caros a cada ser humano: a individualidade.

No celeiro de Andrew Bird


A Pitchfork realizou um documentário de bastidores sobre a criação de Hands of Glory, o EP (companheiro do álbum Break It Yorself) que Andrew Bird editou há poucas semanas. O filme, de sete minutos, leva-nos à quinta do músico, onde o vemos entre parceiros de estrada em volta de apenas um microfone, gravando um disco com características bem distantes de alguma da música mais elaborada que Andrew Bird nos apresentara em ocasiões anteriores.

Podem ver aqui o filme.

Como numa máquina do tempo

O documentário ‘O Cerco de Leninegrado’ foi recentemente lançado em DVD entre nós pela Alambique. Este texto foi originalmente publicado no DN Online com o título ‘O regresso ao cerco de Leninegrado’.

A ideia não será naturalmente a de nos iludir e dar a entender que o realizador estava lá, de câmara na mão, olhando e registando. Mas, integralmente feito de imagens de arquivo que Sergei Loznitsa encontrou em Moscovo, O Cerco de Leninegrado respira um sentido de verdade que encara um lugar, constrói uma narrativa e nos dá a sentir a tragédia que ali aconteceu. A primeira razão pela qual o realizador não poderia nunca ter estado em Leninegrado, durante o cerco que durou 900 dias, entre setembro de 1941 e janeiro de 1944, deve-se ao simples facto de o realizador ucraniano Sergei Loznitsa ter nascido 20 anos depois do levantamento do cerco. Um dos mais dramáticos capítulos da história da II Guerra Mundial, o cerco de Leninegrado afirmou-se também como um dos mais célebres episódios de resistência aos invasores alemães e já conheceu expressão nas artes quer através da célebre Sinfonia Nº 7 de Shostakovich (estreada em Samara, em março de 1942) ou no espantoso Fome, novela de Elise Blackwell que entre nós teve edição pela Livros de Areia.

Loznitsa ordena sob arrumação cronológica as imagens que encontrou e escolheu, criando um arco narrativo com partida nos tempos que antecederam a aproximação dos invasores (onde vemos uma cidade preparando-se para resistir) e o dia da libertação, sob festa e fogo de artifício quase três anos depois. Sem palavras, o filme conduz-nos, sem pressa (dando aos planos o tempo necessário para que nos permitam um olhar atento), mergulhando numa espiral progressivamente mais dramática, ao mesmo tempo revelando uma cada vez maior habituação dos habitantes às rotinas de morte da tragédia ao seu redor. O olhar intenso com que transeuntes se juntam para ver soldados alemães capturados, que desfilam pelas ruas da então Leninegrado (hoje novamente São Petersburgo) contrasta com a absoluta indiferença que os transeuntes vão mostrando para com os cadáveres que, no pico do inverno, vão encontrando caídos pelas ruas da cidade. Nota ainda para o cuidado, mas discreto, trabalho de som, que constrói uma banda sonora que ajuda a vincar uma lógica sequencial às imagens que, sem palavras, afinal são aqui a voz que nos conta uma história.

Evgeni Bozhanov: a estreia portuguesa

É bem certo que o jovem búlgaro Evgeni Bozhanov (n. 1984) não chegou ao Grande Auditório da Fundação Gulbenkian (27 Nov.) como um desconhecido. Longe disso: afinal de contas, estamos a falar de alguém que, desde que venceu o Concurso Internacional Frédéric Chopin de 1999, em Varna (Bulgária), tem protagonizado uma ascensão tão metódica quanto fulgurante. Seja como for, a estreia portuguesa de Bozhanov envolveu uma revelação essencial: a de um verdadeiro narrador, capaz de sustentar um subtil arco de emoções, desde o dramatismo heterodoxo de Beethoven (Sonata nº 18) ao intimismo dilacerado de Chopin (Sonata nº 3), passando pela "ligeireza" contagiante de Schubert (Ländler).
O terceiro andamento, Largo, da sonata de Chopin terá servido de teste decisivo e inequívoco: uma deambulação interior, filtrada por uma obstinação racional que vai transformando a partitura num exercício de passagem da dimensão física para uma abstracção de tocante serenidade. E não seria fácil contrapor às intensidades da peça inicial de Beethoven (espantoso e "desalinhado" segundo andamento, Scherzo: Allegretto Vivace) toda uma gama de sonoridades que, em síntese, nos deixou um condensado de quatro décadas da primeira metade do século XIX — como uma viagem pelas novas formas de solidão da alma, essas que ainda hoje habitam as nossas cansadas utopias.
Ou como Bozhanov deixou uma marca indelével no ano musical português.

>>> Polonaise, por Evgeni Bozhanov, no Concurso Chopin (2010)


>>> Evgeni Bozhanov no site do Instituto Chopin.

terça-feira, novembro 27, 2012

Futebol fora do armário

Eis que surge um teledisco para acompanhar Don't Deny Your Heart, um dos temas do alinhamento de In Our Heads, o mais recente álbum dos Hot Chip. A realização é de Peter Serafinowicz.

Novas edições:
Claudia Brücken, The Lost and Found


Claudia Brücken 
“The Lost and Found” 
Sonic Seduction 
2 / 5
 
Apesar do grupo ter conhecido uma outra voz numa segunda (mas quase invisível) formação, Claudia Brücken será eternamente a voz dos Propaganda. Afastou-se do projeto após a edição do álbum de estreia A Secret Wish (um dos maiores monumentos pop dos anos 80), deu vida ao fugaz projeto Act (com Thomas Leer) e encetou logo depois uma bissexta carreira a solo da qual, em pouco mais de vinte anos, apenas no chegou um pequeno lote de gravações, entre as quais podemos contar colaborações com o compositor Andrew Poppy ou Paul Humphries, dos OMD. Parte da sua obra passa pela recriação de canções de outros autores. E, de resto, logo na estreia dos Propaganda escutámos uma versão de Sorry For Laughing, dos Joseph K, com a mesma banda tendo ainda gravado uma leitura para Femme Fatale, dos Velvet Undreground. No seu regresso aos discos apresenta, em The Lost and Found, uma coleção de versões de canções que, umas mais e outras menos “perdidas” a cantora reencontra e reinterpreta em arranjos trabalhados em conjunto com o produtor Stephen Hague, a segunda “voz” que completa o quadro criativo que aqui se desenha. Hague, que naturalmente associamos a alguns discos marcantes da pop britânica da segunda metade dos oitentas (com nomes como, entre outros, os Pet Shop Boys, New Order, Erasure ou Holly Johnsson) confere ao todo tonalidades algo atmosféricas que evocam a eloquência orquestral que os sintetizadores da época procuravam desenhar. O mais surpreendente do disco está nas escolhas, que vão de um Kings Cross dos Pet Shop Boys ou Everyone Says Hi de David Bowie a Mysteries of Love de Julee Cruise ou The Road To Happiness. Contudo, e se a aproximação à memória da versão original da canção de Julee Cruise e a natural familiaridade de Stephen Hague com King’s Cross (que produziu para o álbum de 1987 Actually) geram momentos particularmente cativantes, o resto do alinhamento do álbum não ultrapassa nunca o patamar da competência que naturalmente esperamos entre ambos os nomes envolvidos. No final, um álbum que não faz mal a ninguém, mas na verdade nada acrescenta senão um título à carreira de Claudia Brücken. E convenhamos que, desde o álbum que editou pela dupla Act, a música com que trabalhou não lhe deu, como aí e nos Propaganda, um palco para brilhar.

A obra-prima de Herbert?


Matthew Herbert anunciou uma reedição de Bodily Functions, o disco que o tempo talvez venha um dia a eleger como sendo a sua obra-prima. O álbum, originalmente editado em 2001, vai conhecer uma reedição a 17 de dezembro no formato de CD duplo, contando o segundo disco com remisturas assinadas por nomes como, entre outros, Jamie Lidell, Matmos, Plaid ou Recloose. Herbert anunciou ainda, para março de 2013, o lançamento de Herbert Complete, uma caixa com a integral da sua obra entre 1996 e 2006.

Em conversa: Andrew Bird (2/2)

Continuamos a publicação de uma entrevista com Andrew Bird realizada por ocasião da sua mais recente atuação em Lisboa e da edição de um novo EP.

O seu trabalho é impossível de rotular com precisão. Nem o podemos apontar como sendo um músico de folk nem de rock, nem mesmo de música erudita... Ou seja, alimenta-se de um vasto leque de referências quando procura a forma como soa a sua alma quando procura expressar-se numa canção.
É isso. Acho que não diria muito melhor... (risos)... Sempre tentei andar por mais que apenas uma cena musical ao longo dos anos. Cada vez que me juntava a uma cena sentia as paredes a apertarem-me... Sentia também a insularidade e a competitividade que nela poderia haver e procurava logo afastar-me. A música por vezes é folk ou bluegrass. Ou mais Django Reindhardt.. Ou musica irlandesa... São tantos os elementos de onde a minha música vem, mas não especificamente um ou outro género. Alguém perguntou-me um dia se eu me integrava numa tradição. Mas não... Cresci nos subúrbios, não tenho qualquer filiação em nada. Mas posso tirar ideias de tudo...

Mas sente-se atraído por ideias além da tradição pop/rock. Veja-se o caso de Useless Creatures. Aí afasta-se do modelo da canção.
Esse disco foi um veículo para libertar coisas que estavam reprimidas. Para alcançar aquela marca dos três minutos e meio, que é o que as pessoas esperam, de canções bem trabalhadas, a coisa ficou feita no Noble Beast. Tive de reprimir aí a vontade de ir mais longe e experimentar. Por isso criei depois o Useless Creatures para as mostrar. Mas transformou-se em algo muito compensador. É um pouco como a suite companheira, uma coleção de coisas que surgiram assim que pegava no violino. São baseadas em formas clássicas, mas são as coisas que toco quando me estou a preparar para atuar. E são peças onde tento encontrar outros pontos de aterragem. Quando preparo a voz antes de um concerto canto coisas de gospel, tipo Staple Singers. Com o violino toco estas coisas para encontrar o meu centro.

Usa o violino para compor? 
Já usei mais, mas com o tempo mudei-me para a guitarra. Porque a posso puxar, sentar-me num sofá e trabalhar. Mas a guitarra tem armadilhas. Qualquer instrumento tem armadilhas. O violino, o assobio e o canto são mais liquidos, as ideias ficam mas fluídas. Com a guiterra sinto a arquitetura da canção a surgir em primeiro lugar.

Vê concertos e ouve discos de violino, de música folk ou clássica? 
Uso-o apenas como um instrumento. Tenho uma longa relação com o violino. Houve fases quem o exilei. Meti-o num canto e só o ia usar quando dele precisasse dizendo-lhe que não teria controlo sobre mim. Ainda é o meu primeiro instrumento e a minha voz principal. Mas uso-o e depois afasto.

Hoje há mais músicos a fazer música com o violino. Levando-o a lugares invulgares na pop, onde em tempos não era tão visível na pop. Estou a falar de um Owen Pallett ou um Patrick Wolf...
Comparar-nos é inútil. É comparar Hendrix e Lennon porque tocam guitarra. Mas o panorama atual está a romper expectativas, sim. Sempre que há muitas regras em volta de um instrumento abrem-se oportunidades para as corromper.

Como surgiu o novo EP, que de certa forma é um disco companheiro do álbum que editou também este ano? 
Foi gravado em dias de folga. Em Louisville gravámos numa igreja. E depois da digressão terminada fomos para a minha quinta. O Break it Yourself era já algo anti-produção. Este vai ainda mais longe. É ainda mais elementar, mais cru. As interpretações são mais cruas.

segunda-feira, novembro 26, 2012

O cinema segundo Monte Hellman (2/2)

Monte Hellman esteve no Lisbon & Estoril Film Festival para acompanhar uma retrospectiva dos seus filmes e apresentar uma "masterclass": oportunidade para encontrar um autor de genuína independência — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Novembro), com o título 'Tragédias gregas e americanas'.

A presença de Monte Hellman no Lisbon & Estoril Film Festival envolve a contemplação de uma inevitável dimensão lendária. Ele é, afinal, o realizador do mítico Two-Lane Blacktop (1972), símbolo visceral de um espírito “on the road” que, não por acaso, se cruza com a identidade musical dos seus protagonistas: James Taylor e Dennis Wilson (baterista dos Beach Boys). Nascido em 1932, Hellman é protagonista de uma extraordinária trajectória criativa que começa nas produções independentes de Roger Corman, passa por alguns dos mais belos westerns dos anos 60, envolve colaborações com nomes como Sergio Leone ou Quentin Tarantino (foi produtor executivo do seu filme de estreia, Cães Danados, em 1992), para desembocar na admirável integração, técnica e temática, das câmaras digitais em Road to Nowhere/Sem Destino (2010).
Se há em Hellman a vibração peculiar de um verdadeiro maverick não é, por isso, em função de um mero conceito de “cinema independente” (que ele, aliás, relativiza sem drama). O que o distingue é a independência radical de um criador que, filme a filme, nunca se apagou num qualquer estereótipo colectivo.
Por isso, quando Hellman nos diz que os seus westerns dos anos 60, Ride in the Whirlwind/O Furacão e The Shooting/Duelo no Deserto (ambos com um espantoso Jack Nicholson, pré-Easy Rider), envolviam o retorno a matrizes da tragédia grega, devemos tomá-lo à letra: a singularidade do seu trabalho pertence tanto às paisagens americanas como a uma cultura genuinamente clássica e universal. Pelo seu cinema perpassam as contradições de um imaginário que, embora marcado por toda uma mitologia dos heróis, nunca deixou de contemplar as ambivalências do heroísmo. Hoje como sempre, o mais corrente anti-americanismo primário passa ao lado de tão fascinante complexidade artística.

Villagers: à espera do álbum

E eis que chega mais um aperitivo para aquele que será o álbum de estreia dos Villagers. O álbum, com o título Awayland, tem lançamento agendado para janeiro de 2013. Este é o teledisco que acompanha o tema Nothing Arrived. A realização é de Geoffrey Morgan.

Novas edições:
Ombre, Believe You Me


Ombre 
“Believe You Me” 
Asthmatic Kitty  / Popstock
4 / 5

Este disco é um fruto de uma era (tão recente, mas ao mesmo tempo já distante) em que o MySpace representou importante espaço de comunicação e acesso a outras músicas e outros músicos, das visitas às páginas de amigos, e de amigos de amigos, e por aí adiante, abrindo-se então, por jogos de gosto e afinidades, janelas de descoberta. Foi o que aconteceu entre Helado Negro e Julianna Barwick. Há uns três anos, andando ele de click em click, descobriu a página dela. Eventualmente encontraram-se. E depois de uma colaboração na estrada resolveram prolongar os diálogos em estúdio, criando uma mão cheia de composições que, agora, apresentam sob o nome comum Ombre, através do qual editam o álbum Believe You Me. As suas são vozes criativas distintas, da soma das suas brotando momentos de partilha onde, frequentemente se sentem claras as contribuições (e eventuais momentos de protagonismo) de ambos. Nascido na Flórida, filho de pais emigrados do Equador, Helado Negro cresceu exposto a marcas profundas da identidade cultural latino-americana. Tendo crescido entre o Missouri e a Louisiana, Julianna Barwick transporta na sua música não apenas os ecos das memórias dos coros que escutou e onde cantou, mas também da paisagem verde, rural, que teve como cenário de vida. Num estúdio de Brooklyn juntaram genéticas e vivências, das ideias emergindo uma música que tanto traduz a presença dos ecos das experiências de afinidade folk e psicadélica dele e os tons minimalistas, ambientais e mais translúcidos da música dela. O diálogo que escutamos em Believe You Me soma experiências e interesses. Busca uma ideia de patamar comum, que não apaga nunca a expressão de identidade dos protagonistas. E propõe um espaço de encontro que revela a verdadeira força do que um encontro de vozes distintas pode gerar. Desafiante, mas ao mesmo tempo com traços de familiaridade, é mais um título a acrescentar aos melhores momentos discográficos de 2012.

Qual foi o melhor filme de James Bond?


Depois de termos aqui colocado a votos a melhor canção e também o melhor ator ao serviço do papel do agente 007, esta semana completamos o trio de “consultas” aos leitores do Sound + Vision perguntando qual foi o melhor dos filmes (do cânone) James Bond estreados nestes 50 anos de vida do espião no grande ecrã. As respostas, como sempre, podem ser dadas na barra lateral do blogue.

1962. Dr. No
1963. From Russia With Love
1964. Goldfinger
1965. Thunderball 
1967. You Only Live Twice
1969. On Her Majesties Secret Service
1971. Diamonds Are Forever
1973. Live and Let Die
1974. The Man With The Golden Gun 
1977. The Spy Who Loved Me
1979. Moonraker
1981. For Your Eyes Only
1983. Octopussy  1985. A View To A Kill
1987. The Living Daylights
1989. Licence To Kill
1995. Goldeneye
1997. Tomorrow Never Dies
1999. The World Is Not Enough
2002. Die Another Day
2006. Casino Royale
2008. Quantum of Solace
2012. Skyfall

Em conversa: Andrew Bird (1/2)


Iniciamos hoje a publicação de uma entrevista com Andrew Bird realizada por ocasião da sua mais recente atuação em Lisboa e da edição de um novo EP. A entrevista serviu de base a um artigo publicado no DN.

Como deixava entender no documentário Andrew Bird: Fever Year, uma digressão é coisa de agenda intensa e cansativa. O que faz um musico querer ir todas as noites para o palco mesmo esgotado e com a vida feita num farrapo? 
Estar no palco é algo de viciante. Quando se está em digressão sente-se que a nossa existência tem uma razão de ser. Cada vez que deixo Chicago para entrar em digressão sinto que há peso a sair aos meus ombros. A cada novo dia sei que estarei numa nova cidade e tudo envolve uma combinação do conhecido e do desconhecido. Mas é muito cansativo, isso é verdade.

Consegue conhecer os lugares por onde passa para atuar? Ou a rotina não lhe dá espaço para fugas? 
Tento sair para ver o que faz cada cidade ser o que é. Levo comigo uma bicicleta e saio... Não gosto daquela sensação de imaginar que posso estar num sitio qualquer. Nada disso. Sinto que os lugares são distintos entre si. É fascinante. E é uma forma extraordinária de viver uma vida..

Leva depois algo desses lugares para o palco e eventualmente para futuras canções? Ou são experiências que ficam consigo? 
Gostaria que isso acontecesse. Quando estou a escrever sem agenda, sem expectativas, tenho montes de ideias. Gosto de estar nesses lugares onde não tenha as rotinas diárias que se tem na cidade onde se vive. É uma existência fértil para a escrita. Eu não faço canções completas quando estou em digressão, mas consigo trabalhar bons começos. Ter boas ideias. Estar num lugar diferente todos os dias dá-nos um retrato mais vasto do mundo. Dá-nos outras perspectivas.

No filme que há pouco referia dizia que estar no palco tinha de ser algo verdadeiro. Ou seja, não é uma coisa que se dá enlatada, sugerindo assim que o concerto é como a partilha de um momento único... 
Isso é o que tento fazer a cada noite e é verdade que consome muita energia. Tentar olhar para nós mesmos e tentar não entrar num padrão. Evitar o padrão. E como se faz isso quando se dá um concerto a cada dia? Mas em cada um tentamos fazer algo diferente que mantenha a banda alerta a ouvir o que estamos a fazer. Tentar procurar algo pessoal. Creio que a razão de uma existência tem a ver com o que estou a dizer. Cada dia é como uma luta que, esperamos, acabe sempre em triunfo. O que nem sempre acontece. Isto alimenta algo na minha personalidade.

Sente que é outra pessoa quando está fora do palco? 
São realidades muito diferentes entre si. Quando estou em casa, a escrever, fico mais introvertido. Em palco tenho de me projetar para fora. São climas e modos de estar muito diferentes

Qual envolve mais esforço? E qual lhe é mais natural? 
Creio que sou classicamente mais introvertido. As atuações são as exceções na minha vida onde sou como me mostro. Nunca o compreendi... Sempre fui calmo e tímido. Mas nos dias de escola, quando me punha em frente da turma para, por exemplo, falar de um livro, ficava mais composto e as pessoas estranhavam. Porque normalmente era calado. A dada altura fui até metido numa classe especial para crianças mais lentas. E porquê? Porque estava sempre muito dentro do meu mundo... E aquele contraste não fazia sentido para os meus professores. Ainda hoje penso nisso. Como músico sinto que tenho a profissão perfeita para alguém que gosta de evitar as pessoas. Ou seja, lido com as pessoas à minha maneira. E poucos têm uma desculpa tão boa como a minha para não ter de falar com pessoas.
(continua)

Prince: funk mais funk não há

A nova canção de Prince — Rock & Roll Love Affair — já tem teledisco. E o mínimo que se pode dizer é que é bom de ver (e ouvir!) esta obstinada fidelidade ao funk. Finalmente, ouvimos algo que se parece com a herança de Prince. Pelo próprio, hélas!

domingo, novembro 25, 2012

Porque somos o que escutámos

O compositor Thomas Adès, que aqui se senta ao piano, partilha com o violoncelista Steven Isserlis o protagonismo deste disco, onde interpretam obras de Liszt, Janacék, Fauré, Kurtág e do próprio Adès.

Íamos em 1668 quando Francesco Redi provou que a abiogénse, ou seja, a criação de vida a partir de matéria não viva, afinal não existia. A ideia de algo que surge por “geração espontânea” pode ter sido importante espaço de reflexão noutros tempos, mas na prática a coisa era diferente. E na sua experiência, mostrou como as larvas de moscas não surgiram na carne que tinha em recipientes tapados, porque a tela que os cobria impedia que as moscas lá colocassem os ovos... Ora, se taparmos os ouvidos de um compositor a coisa será semelhante. É claro que não podemos aplicar a mesma lógica da experiência em sentido lato. Mas o que vem ao caso é que a ideia de “geração espontânea” na música, como nas artes em geral, é coisa que, salvo exceções (admito que as haja, que isto de fazer generalizações sem aplicar o método científico dá asneira) não deverá existir. Toda a música (ou quase toda, já que não inventariámos a coisa e não podemos ser assim tão definitivos) provém de uma série de relações que se estabelecem entre o compositor, o seu tempo e lugar, a sua vivência, os materiais (humanos e sonoros) à sua disposição e a forma como ouviu, integrou e assimilou o que de outros escutou. A evolução, como na biologia, tem saltos, que podem ser explicados por mudanças sociais, tecnológicas ou eminentemente estéticas. Mas, quase sempre, o que o compositor escuta acaba por definir o que vai ser, seja por uma lógica de acção por oposição, continuidade ou transformação. O que este novo disco nos mostra, na forma de um sublime recital para violoncelo e piano, é como uma nova peça de Thomas Adès para estes dois instrumentos na verdade não é senão o resultado de uma vivência (e naturais reflexões) do compositor face a obras de outros autores. Assim, o alinhamento – que sugere precisamente essa lógica de recital – passa por peças de Liszt (1811-1886), Janacék (1854-1928), Fauré (1845-1924) e Kurtág (n. 1926), antes de chegar a Lieux Retrouvés, um encontro entre o cromatismo expressivo do violoncelo e a presença também marcante do piano, segundo Thomas Adès (n. 1971). Composta para o violoncelista Steven Irrselis, que partilha precisamente com Adès (piano) este alinhamento, esta obra de 2009 nasce de um relacionamento de Adès com os demais compositores que aqui revisita, a eles juntando-se ainda ecos de uma vivência num presente onde se cruzam ainda espaços da música popular e de uma presença do minimalismo. Porque, ao contrário da carne da experiência de Redi, Adès não vive com telas a tapar-lhe os ouvidos.

E o melhor James Bond é...


... Sean Connery. A votação foi expressiva e não deixou margem para dúvidas, destacando assim o ator que deu pela primeira vez vida ao agente 007 no grande ecrã. Curiosamente, o segundo classificado foi Daniel Craig, o Bond em funções, classificação que não só dá conta de uma relação geracional com o presente, como pode sublinhar ainda que, pelos vistos, a série está neste momento “bem entregue”. Roger Moore, que detém o recorde de participações (sete), ficou em terceiro lugar (Sean Conney tem na verdade um sétimo filme como James Bond – Never Say Never Again, de 1983 – mas foi de produção exterior ao “cânone”). Em quarto surge lugar, Pierce Brosnan. E a fechar a tabela, o Bond de um filme só George Lazenby conseguiu mesmo assim ultrapassar Timothy Dalton, o 007 de uma etapa de crise para a série, em finais dos anos 80.


1º – Sean Connery – 45%

2º - Daniel Craig – 23%

3º - Roger Moore – 13%

4º - Pierce Brosnan – 11%

5º - George Lazenby – 3%

6º - Timothy Dalton – 2%

Três olhares, por Hugo Fernandes


Continuamos a fazer viagens pelo mundo através dos olhares de amigos e leitores do Sound + Vision. Nesta primeira etapa as presenças resultam de convites feitos por nós. A seu tempo abriremos espaço a contribuições dos leitores (estejam por isso atentos). A ideia é simples. Cada um deverá olhar para um lugar. Aquele onde vive. Aquele onde viajou. Escolher três imagens. E fazê-las acompanhar de um pequeno texto. Hoje apresentamos olhares captados na Noruega pelo arquiteto Hugo Fernandes, que reside em Oslo. Um muito obrigado ao Hugo pela colaboração.

Três lugares emblemáticos de Oslo, anteriormente chamada Christiania, que revelam a passagem do tempo, mais especificamente a transição entre Verão/Outono/Inverno. Num país com um clima bastante inóspito, a passagem das estações do ano apresenta a cidade de differentes formas, revelando ou ocultando espaços e a forma como se vivem estes mesmo lugares.

Frognerparken- 07.10 2007. O mais visitado Parque da cidade, sobretudo no Verão, quando os extensos relvados são ocupados pelos locais e não só, em busca de sol.

Rådhusplassen- 03.11.2007. A praça em frente ao edificio da Câmara com vista previligiada para Oslofjord.

Slottsparken- 16.02.2006. O jardim que envolve o Palácio Real.

O amor louco segundo Françoise Hardy

Françoise Hardy, 68 anos: o romantismo persiste. E também essa distância elegante que, ao concreto dos gestos amorosos, acrescenta a beleza imaginária da eternidade. Dito de outro modo: a cantora do clássico Tous les Garçons et les Filles (1962) regressa com um álbum que propõe uma delicada revisitação da frágil loucura do amor, adequadamente chamado L'Amour Fou — sem nostalgia, intensamente presente. Três belíssimas canções para confirmar: L'Amour Fou, Pourquoi Vous? e Si Vous N'Avez Rien à Me Dire...






>>> Site oficial de Françoise Hardy.

Larry Hagman (1931 - 2012)

Actor americano com uma carreira de mais de meio século, ficou célebre como intérprete da personagem de J. R. Ewing, da série televisiva Dallas: Larry Hagman faleceu no dia 23 de Novembro, no Medical City Hospital de Dallas, vítima de cancro — contava 81 anos.
Ironia cruel: apesar da sua presença em alguns títulos marcantes da produção de Hollywood durante a década de 60 — por exemplo: Fail Safe/Missão Suicida (1964) e The Group (1966), ambos de Sidney Lumet, e In Harms's Way/A Primeira Vitória (1965), de Otto Preminger —, Hagman permaneceu como um secundário disponível e competente, mas também com uma imagem discreta. A série Dallas (1978-1991) mudou para sempre o seu estatuto, a ponto de, para a esmagadora maioria dos espectadores, a sua identidade se confundir com a sigla "J. R.". Entre os seus derradeiros papéis no cinema, incluem-se participações em Nixon (1995), de Oliver Stone, e Primary Colors/Escândalos do Candidato (!998), de Mike Nichols. Em tempos recentes, integrava o elenco de uma nova série Dallas, continuação da original, cuja segunda temporada tem estreia prevista para Janeiro de 2013.

>>> Obituário no New York Times.
>>> A série Dallas: 1978-1991; 2012.

sábado, novembro 24, 2012

Kristin Hersh, 1994

Uma recordação hoje do alinhamento do belíssimo álbum Hips & Makers, que Kristin Hersh editou em 1994. Aqui fica o teledisco de Your Ghost, canção que conta com uma colaboração de Michael Stipe.

The Gift: 18 anos depois...

Este texto é um excerto da crítica ao concertos dos The Gift a 23 de novembro no Coliseu do Porto que hoje publico no DN Online. Podem ler aqui o texto completo.

Foi com os músicos no corredor central da plateia, com um Coliseu do Porto em silêncio, escutando uma última canção de um alinhamento que então via o ponteiro a indicar três horas de atuação que a festa terminou. Sala cheia, esgotada há já vários dias, acolhia o segundo de um par de concertos diferentes dos que fizeram a última digressão do grupo. Afinal, juntamente com a noite de casa cheia há precisamente uma semana, no Coliseu dos Recreios (em Lisboa), as duas noites assinalavam, com um programa diferente e uma noção de arrumação dos acontecimentos em três atos (como se fosse um musical), os 18 anos de vida dos The Gift. Quem os viu, em finais de 1998, num lisboeta São Luiz, então também cheio, a apresentar as canções de Vinyl (o seu segundo disco, que antes tinham editado o hoje algo esquecido EP Digital Atmosphere), talvez não imaginasse que uma ideia tão afastada do que era então o terreno comum do espaço pop/rock português, algum dia chegasse a este patamar de reconhecimento mainstream (e atenção que esta expressão não é palavrão que implique juízo de valores, quer apenas traduzir uma noção de relacionamento com o "grande público"). Mas chegou. E se há uma primeira palavra para explicar o que sucedeu, essa palavra será: "trabalho".

Novas edições:
Vários Artistas, Lawless O.S.T.

Vários Artistas
"Lawless - Original Motion Picture Soundtrack"
Sony Music
3 / 5

Nick Cave tem repartido o seu tempo entre o cinema e a música. Em Lawless assinala um dois-em-um, juntando ao argumento que escreveu (baseado no romance The Wettest County in the World, de Matt Bondurant) e que John Hillcoat filmou, à construção de uma banda sonora que conta com algumas composições novas entre versões de temas clássicos, mas cuja interpretação é repartida entre várias vozes. Dado o espaço e tempo em que a ação decorre o clima country era peça desde logo central à equação de referencias convocadas. A construção de uma banda para servir o filme (e na qual milita Mark Lanegan) é outro dos suportes estruturais da música que agora encontramos em disco. Mas os verdadeiros protagonistas são Emmylou Harris (a quem são entregue magníficos novos temas de Nick Cave e Warren Ellis e uma versão da Snake Song de Townes Van Zandt e de um tema de Jason Lytle) e o veterano Ralph Stanley (que brilha sobretudo numa versão descarnada ao osso de White Light White Heat, dos Velvet Underground). O alinhamento junta ainda contribuições de Willie Nelson e do próprio Nick Cave.

Este texto foi originalmente publicado na edição de novembro da revista 'Metropolis', que podem ler aqui.

O cinema segundo Monte Hellman (1/2)

Monte Hellman esteve no Lisbon & Estoril Film Festival para acompanhar uma retrospectiva dos seus filmes e apresentar uma "masterclass": oportunidade para encontrar um autor de genuína independência — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (17 Novembro), com o título 'O digital está a mudar a maneira de distribuir e exibir filmes'.

Quando se estreou o seu filme mais recente, Road to Nowhere/Sem Destino (2010), os espectadores que o conheciam através dos westerns dos anos 60 sentiram-no como uma grande mudança no seu trabalho.
Não terá sido uma mudança no meu trabalho. Eu é que mudei. A grande diferença provém de um método que apliquei, tentando que os meus actores deixassem de pensar. O argumento era obscuro e isso ajudava. Quando me pediam ajuda para compreender o que estava a acontecer, dizia que não fazia mal porque eu também não compreendia...
Não queria, portanto, a dúvida clássica: “Qual é a minha motivação?”
Exactamente. E funcionou muito bem: cada actor arranjou a sua maneira de lidar com a situação.
O resultado é paradoxal, já que o filme nos faz sentir a vida interior das personagens.
Porque era preciso não pensar em nada e sentir tudo.
Há algo em Road to Nowhere que não é estranho ao gosto da deambulação, ao espírito “pela estrada fora” que marca o seu clássico de 1971, Two-Lane Blacktop.
Creio que começou com a influência do crítico alemão Siegfried Kracauer (1889-1966). Ele escreveu um livro, Teoria do Cinema ou a Redenção da Realidade Física, em que fala da estrada como algo que fez o cinema diferente: se rodarmos uma cena dentro de quatro paredes, isso é teatro; mas a partir do momento em que há uma janela para a rua, para a estrada, então torna-se cinema.
O que não será estranho à tradição do western. Quando filmou O Furacão (1965) ou Duelo no Deserto (1966) procurava, de alguma maneira, reencontrar uma certa imagem mítica da América?
Não exactamente, já que estávamos a lidar com uma realidade muito concreta: trabalhámos a partir de diários originais, escritos por pioneiros alemães e eslovacos. Ao mesmo tempo, interessava-me encontrar alguns temas universais, como a relação dos homens com a terra, vindos da tragédia grega.
Esse é também um tempo de afirmação de uma certa produção independente. Parece-lhe que, hoje em dia, há algo que persista dessa produção?
Tudo isso era um pouco um mito. Houve um verdadeiro independente, Roger Corman, que deu oportunidade a vários cineastas emergentes. Hoje em dia, na verdade, os independentes são um prolongamento dos grandes estúdios.
Tem, por isso, uma visão mais pessimista do cinema americano?
Não, não creio, até porque me parece que a minha visão não mudou assim tanto.
E o uso das câmaras digitais em Road to Nowhere? Não muda a própria maneira de fazer filmes?
Não sei se muda a maneira de fazer, mas é um facto que está a mudar a maneira de distribuir e exibir filmes: o equipamento de projecção vai melhorando de forma incrível.
Ainda assim, há muitos espectadores, sobretudo mais jovens, que passaram a ver filmes apenas no computador ou em ecrãs ainda mais pequenos...
Por vezes mesmo muito pequenos... É uma perda: não há nada que se compare a uma boa projecção num grande ecrã. E quanto maior, melhor! A melhor projecção que vi de Two-Lane Blacktop foi num “drive-in”, com um ecrã quatro vezes maior do que numa sala normal.
Como vai ser o seu próximo filme?
Estou a trabalhar num projecto sobre heroísmo e romantismo. É um “thriller” sobrenatural. Vai chamar-se Love or Die (“Amar ou Morrer”), mas ainda não posso dizer qual vai ser o elenco.
Há uma diferença entre trabalhar com estrelas ou actores totalmente desconhecidos?
Não creio. Há filmes que pedem a dimensão de uma estrela, outros não...
Pode dar-nos dois exemplos clássicos, um homem e uma mulher, que tenham, para si, essa dimensão de estrela?
Sean Connery. E Ingrid Bergman.