The Misfits (rodagem) |
Marilyn Monroe faleceu há meio século... Em boa verdade, as suas memórias e imagens estão sempre a reaparecer, como se nunca soubéssemos encerrar a sua história — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (15 Setembro), com o título 'A inocência perdida de Marilyn Monroe'.
Com um elenco que incluía Clark Gable, Montgomery Clift, Eli Wallach e Thelma Ritter, The Misfits/Os Inadaptados é, justamente, um dos filmes de Marilyn que agora é possível redescobrir em Blu-ray, dir-se-ia sujeitando-o às maravilhas de “purificação” da imagem digital, porventura atenuando as memórias dos tempos agitados que Hollywood atravessava.
Na sua história dramática dos derradeiros cavalos selvagens da região de Reno, Nevada, parece confluir toda a angústia de um tempo em que se pressentia que, de facto, algo de Hollywood estava a acabar. Aliás, a história mais geral registou o modo como esse fim de ciclo pareceu contaminar os protagonistas do próprio filme. Assim, logo após a conclusão da rodagem, Marilyn anunciou a sua separação de Arthur Miller (6), que tinha escrito o argumento; poucos dias mais tarde, Clark Gable faleceu, com 59 anos, vitimado por um ataque cardíaco fulgurante. Daí que seja quase inevitável olharmos para Os Inadaptados como uma crónica íntima de todas as tragédias anunciadas. O próprio Huston resumiu isso mesmo, lembrando que Marilyn, absolutamente comovente na sua desamparada personagem (‘Roslyn’), não usou “técnicas” para representar: “Era tudo verdade. Era tudo Marilyn.”
Os outros filmes agora editados ilustram a imagem mais ligeira que construímos de Marilyn: a de uma presença cuja graça (não apenas no sentido cómico, mas também como uma bênção) transcende estilos, géneros e até o próprio cliché de “loura estúpida” que, desde muito cedo, a ela se colou. Entre eles estão, naturalmente, três incontornáveis obras-primas da comédia mais ou menos romântica: Os Homens Preferem as Louras (1953), de Howard Hawks, e O Pecado Mora ao Lado (1955) e Quanto Mais Quente Melhor (1959), ambos de Billy Wilder.
Há ainda dois títulos, secundários neste conjunto, mas por certo bem reveladores dos valores de espectáculo da época, nomeadamente através da integração de valores enraizados no género musical. Curiosamente, em ambos encontramos Marilyn, ainda não como cabeça de cartaz, mas integrada em elencos que valem, antes do mais, pela sua lógica colectiva. O primeiro, Como se Conquista um Milionário (1953), tem assinatura de Jean Negulesco e narra as aventuras “romântico-financeiras” de três mulheres interpretadas por Marilyn, Betty Grable e Lauren Bacall. O segundo, There’s No Business Like Show Business/Parada de Estrelas (1954) é uma féerie musical dirigida por Walter Lang, em que Marilyn contracena com Ethel Merman, Dan Dailey, Donald O’Connor e Mitzi Gaynor.
De todos os filmes agora disponíveis em Blu-ray, River of no Return/Rio Sem Regresso (1954), de Otto Preminger (7), permanece como o mais insólito e, provavelmente, também o mais fascinante. É, em qualquer caso, um filme que, não sendo desconhecido, fica quase sempre ausente das evocações e efemérides de Marilyn. Em boa verdade, há nele uma abordagem ambígua nas regras do western que dificulta a sua inscrição numa zona específica da produção clássica.
A história do homem que terminou a sua pena na prisão (Robert Mitchum) e vem buscar o filho (Tommy Rettig), entregue aos cuidados de uma cantora de saloon (Marilyn), funciona como uma espécie de avesso simbólico do próprio western: em vez de uma saga sobre a preservação do espaço familiar, Preminger, autor de muitos e geniais “desvios” narrativos, filma antes a possibilidade de uma nova organização familiar nascer do esvaziamento dos valores clássicos. Na filmografia de Marilyn é também um filme que convoca uma interrogação visceral da sua existência: como regressar a casa? Como se a ficção fosse, enfim, o espelho mágico da realidade.
(6) ARTHUR MILLER (1915-2005) – Autor de peças como Morte de um Caixeiro Viajante, The Crucible/As Bruxas de Salém e Depois da Queda, é um dos nomes grandes do teatro do séc. XX. Também ensaísta e escritor de ficção, publicou em 1987 a autobiografia Timebends: a Life.
(7) OTTO PREMINGER (1905-1986). De origem austríaca, discípulo de Max Reinhardt, foi encenador teatral, antes de assinar em Hollywood alguns grandes clássicos como Laura (1944), Carmen Jones (1954) ou O Homem do Braço de Ouro (1955). O seu derradeiro filme, O Factor Humano (1979), adaptava o romance homónimo de Graham Greene.