Manoel de Oliveira regressa à paixão do teatro através de um grande filme: O Gebo e a Sombra adapta a peça homónima de Raul Brandão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Outubro), com o título 'O pesadelo do dinheiro segundo Manoel de Oliveira'.
Há toda uma memória literária portuguesa que ecoa na vasta filmografia de Manoel de Oliveira. Desde o teatro de José Régio (Benilde ou a Virgem Mãe, 1975) até um conto de Eça de Queiroz (Singularidades de uma Rapariga Loura, 2009), passando pelas várias inspirações colhidas em Camilo Castelo Branco ou Agustina Bessa Luís, Oliveira tem assumido muito do seu cinema como um labor de revisitação e reinvenção da palavra escrita.
Assim volta a acontecer com O Gebo e a Sombra, filmado a partir da peça homónima de Raul Brandão. E há um misto de ironia cultural e concisão artística no facto de estarmos perante um objecto que, embora falado em francês, com um elenco luso-francês, resultando da colaboração de Portugal e França (com produção de Luís Urbano, Sandro Aguilar e Martine de Clermont-Tonnerre), se mantém fiel às raízes portuguesas da sua inspiração e do seus temas.
Esta é a história de Gebo (Michael Lonsdale), que vive com a mulher Doroteia (Claudia Cardinale) e a nora Sofia (Leonor Silveira); a sua actividade de contabilista obriga-o a uma paciente tarefa de números e contas que, afinal, mascara uma inquietação profunda: qual a situação do seu filho João (Ricardo Trêpa) e que efeitos pode desencadear o seu enigmático regresso?
Contando com a colaboração de um dos mais prestigiados directores de fotografia do cinema europeu, Renato Berta (trabalhou, entre muitos outros, com Jean-Luc Godard, Eric Rohmer e Alain Resnais), Oliveira filma a teatralidade das palavras a partir de uma utilização claustrofóbica do estúdio de cinema. À medida que a história se adensa, vai pairando uma estranha sensação de assombramento em torno da personagem do filho, emprestando uma dimensão paradoxal à ambiência do filme: por um lado, assistimos a uma divertida crónica de usos e costumes, em particular através das personagens de Candidinha e Chamiço (interpretadas, respectivamente, por Jeanne Moreau e Luís Miguel Cintra); por outro lado, dir-se-ia que a rotina das acções não passa de uma aparência que, a pouco e pouco, vai gerando a sensação de que tudo se passa dentro de um sonho, porventura um pesadelo.
Rodado em Paris, estreado no último Festival de Veneza, O Gebo e a Sombra é a 31ª longa-metragem de Oliveira, lançada setenta anos depois da primeira (Aniki-Bobó, 1942). Em declarações incluídas no dossier de imprensa do filme (entrevista a António Preto), Oliveira define-o através de uma ironia que vale a pena sublinhar: “(...) Diria que o filme é um espelho da sociedade actual. Se falta dinheiro, é porque alguém o roubou. Não sei como vai acabar o mundo e não estarei cá para o ver.”