A actualidade televisiva faz-se tanto de algumas séries brilhantes como da violência discursiva da Casa dos Segredos (sobre a qual os nossos comentadores políticos mantêm um lamentável silêncio...) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Setembro), com o título 'Algum realismo televisivo'
1. A série Wallander (AXN Black) é um curioso exemplo de transposição cultural. Estamos perante um genuíno produto britânico, com chancela da BBC, acompanhando o quotidiano do inspector da polícia Kurt Wallander; ao mesmo tempo, a série preserva as paisagens e referências da sua origem sueca, já que se trata de uma adaptação dos livros de Henning Mankell, por sua vez na base de uma série e vários filmes de produção sueca. A composição de Kenneth Branagh (também produtor executivo) concentra o essencial da dramaturgia realista: Wallander é um homem marcado pelas convulsões da sua história pessoal, em particular pela dependência do álcool, projectando nos casos em que trabalha as marcas de muitos anos de desencanto. Daí a subtileza: quando mais nos entranhamos num enigma policial, mais participamos do desnudamento psicológico do protagonista.
2. A quinta temporada de Mad Men (RTP2) é uma sucessão de admiráveis exercícios de revisão do imaginário, não apenas da publicidade, mas de toda a década de 1960. Nunca, em nenhum momento, a série cai no pecado (muito televisivo) de tratar as referências históricas como sinais de um pitoresco mais ou menos nostálgico. Desde a música dos Beatles até à evolução dos carros Jaguar, passando pelas metódicas variações do vestuário, cada elemento faz parte de uma teia eminentemente realista de ideias e sentimentos. E é também por causa do seu realismo que, não poucas vezes, Mad Men integra com admirável contundência as forças do sonho e as hipóteses de assombramento.
3. A Casa do Segredos (TVI) regressou com os horrores de um imaginário que consagra o arrivismo torpe, a manipulação moral e a obscena instrumentalização da sexualidade, tudo sem o mínimo de respeito pela dignidade humana. Massacrando os cidadãos com este tipo de narrativas, alimenta-se uma dependência consumista, mas não se pode esperar a construção de uma verdadeira comunidade de espectadores. Já era altura de os comentadores políticos dizerem alguma coisa sobre esta hecatombe (política, precisamente). A crise também é isto.