sábado, setembro 22, 2012

Marilyn: memórias cruzadas (2/3)

Marilyn Monroe faleceu há meio século... Em boa verdade, as suas memórias e imagens estão sempre a reaparecer, como se nunca soubéssemos encerrar a sua história — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (15 Setembro), com o título 'A inocência perdida de Marilyn Monroe'.

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André de Dienes (2) nunca se casou com Norma Jeane. Mas talvez se possa dizer que foi com ele, através das suas fotografias, que nasceu Marilyn Monroe. Nos EUA desde 1938, a trabalhar para a Esquire e a Vogue, terá visto na “menina-mulher” que era Norma Jeane uma promessa de glamour e, no limite, um sonho radical de Hollywood e para Hollywood.
Quando os dois empreenderam a sua primeira viagem, em 1946, não se pode dizer que qualquer um deles soubesse que destino procurar. Dito de outro modo: mesmo que pelas suas cabeças passasse a miragem de Hollywood (e podemos ter a certeza que passava...), não havia maneira segura de saber em que modelo encaixar Norma Jeane. Nas suas memórias, publicadas no duplo álbum Marilyn (Taschen, 2011), Dienes recorda o seu projecto de um livro de “nus artísticos” e evoca o primeiro encontro com Norman Jeane, uma das candidatas a seu futuro modelo. Descreve a figura angelical que lhe apareceu (“um anjo terreno e sexy!”), mas a chave de tudo estará nas palavras que abrem o seu relato: “A realidade pode ser mais estranha que a ficção.”
Em 1946, fotografada por Dienes nas paisagens da célebre Route 101, a norte de Hollywood, Norma Jeane era, de facto, uma nova realidade iconográfica e, por certo, também um novíssimo apelo de ficção. Aquela rapariga de sorriso aberto e cristalino, sem poses ambivalentes ou subentendidos pecaminosos, não se confundia, por exemplo, com o glamour frio, hiper-clássico, de Lana Turner (3), uma das estrelas desse mesmo ano através da sua inesquecível ‘Cora Smith’ em The Postman Always Rings Twice (O Destino Bate à Porta), sob a direcção de Tay Garnett.
Além do mais, outro sucesso do ano, Os Melhores Anos da Nossa Vida, de William Wyler, que os Oscars viriam a consagrar alguns meses mais tarde, pouco ou nada tinha a ver com os labirintos do glamour e da sedução: com um par eminentemente tradicional – Myrna Loy e Fredric March –, o seu programa era simultaneamente afectivo e ideológico, tentando reavaliar as feridas da Segunda Guerra Mundial através das memórias cruzadas de três militares.
É certo que 1946 foi também o ano de Gilda, um delírio romanesco (não necessariamente romântico) em que Charles Vidor dirigia Rita Hayworth (4) na personagem que lhe deu um lugar eterno no panteão feminino de Hollywood. Ou ainda de Duelo ao Sol, de King Vidor, variação surreal sobre as regras tradicionais do western, contaminado por um erotismo “diabólico” que começa na mítica performance de Jennifer Jones. Seja como for, a Marilyn que estava a nascer nas fotografias de Norma Jeane não se confundia com nenhuma dessas emblemáticas figuras femininas do entertainment do pós-guerra.
Numa frase que entrou para a lenda, Rita Hayworth definiu assim a cruel ilusão gerada pela femme fatale que interpretou: “Os homens vão para a cama com Gilda e... acordam comigo.” Norma Jeane, fotografada por Dienes, era uma promessa, se não de mais realismo, em todo o caso de uma outra realidade: para além da ânsia cega do desejo, aquela mulher, ainda exibindo as résteas de uma alegria infantil, parecia prometer a cada olhar masculino não deixar de ser igual a si própria.
Talvez seja inevitável sublinhar que, entre as fotografias de André de Dienes e o filme final de Marilyn Monroe – The Misfits/Os Inadaptados (1961), de John Huston (5) –, aquilo que se perde não é exactamente a inocência, mas a crença na sua possibilidade.
Tinham passado apenas 15 anos sobre o encontro de Norma Jeane com Dienes. Mas foram 15 anos, ao mesmo tempo fulgurantes e terríveis, em que o mundo se foi abrindo a todas as ilusões e desilusões que desembocaram nas convulsões dos sixties, com Hollywood a viver a amarga desagregação da sua arquitectura clássica. E tudo isso vivido com um desencanto francamente pouco poético: as mais populares figuras femininas do cinema no ano da morte de Marilyn (1962) já não pertenciam à galeria etérea de Gilda ou Rita Hayworth. Nada disso: num dos maiores sucessos do ano, o muito negro Que Teria Acontecido a Baby Jane?, Robert Aldrich filmava duas estrelas vindas dos primórdios do cinema sonoro – Bette Davis e Joan Crawford –, encenando-as como fantasmas quase burlescos do seu próprio envelhecimento.

(2) ANDRE DE DIENES (1913-1985) – Nascido em Turia, Transilvânia (actual Roménia), começou como fotógrafo, em França, trabalhando para o jornal L’Humanité, do Partido Comunista, e a Associated Press. A viver nos EUA a partir de 1938, fotografou muitas celebridades de Hollywood, incluindo, além de Marilyn, Marlon Brando, Henry Fonda e Jane Russell.

(3) LANA TURNER (1921-1995) – Um dos símbolos mais puros do glamour clássico de Hollywood. Além de O Destino Bate à Porta, entre os seus títulos mais célebres incluem-se Os Três Mosqueteiros (George Sidney, 1948), Cativos do Mal (Vincente Minnelli, 1952) e Imitação da Vida (Douglas Sirk, 1959).

(4) RITA HAYWORTH (1918-1987) – Dois filmes bastaram para lhe conferir um lugar na mitologia de Hollywood: Gilda (1946) e A Dama de Xangai (1947), este um exercício de ternura e crueldade em que o realizador Orson Welles (então seu marido) desmonta a imagem de Gilda. Sangue e Arena (1941), de Rouben Mamoulian, e Pal Joey (1957), de George Sidney, são outros momentos marcantes da sua filmografia.

(5) JOHN HUSTON (1906-1987) – Um dos mestres clássicos de Hollywood, autor de títulos tão célebres como Relíquia Macabra (1941), O Tesouro de Sierra Madre (1948) ou A Rainha Africana (1951). Dirigiu Marilyn Monroe num dos seus primeiros pequenos papéis, em Quando a Cidade Dorme (1950).