domingo, abril 08, 2012

Nos 40 anos de Nick Drake (3)


Continuamos a publicação integral de um texto sobre Nick Drake publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias, assinalando os 40 anos da edição de 'Pink Moon'. O texto, com o título 'Como Nick Drake se transformou num ícone' foi publicado a 25 de fevereiro.

Nick Drake nasceu num hospital em Rangoon (na antiga Birmânia, hoje Myanmar) a 4 de janeiro de 1948. A família regressaria a Inglaterra em 1951, instalando-se numa bela casa rural (Far Leys), onde Nick cresceu, criando as suas primeiras canções ainda nos dias de escola. E sobre o que falavam essas primeiras canções? As suas duas grandes paixões de então: cowboys e comida. Teve a sua primeira banda no Marlbrough College. Chamavam-se Perfumed Gardiners e Nick Drake tocava clarinete, saxofone e piano. Por essa altura ouvia essencialmente a música de nomes como John Coltrane ou Miles Davis mas em breve a sua atenção centrar-se-ia na guitarra. Tirou um ano de férias entre o liceu e a universidade e no Verão de 1966 dava por si pelas estradas de França, de guitarra na mão, dormindo numa tenda e cantando para amigos à volta de fogueiras.

Regressa a França em 1967, passa por Marrocos e em Outubro entra no Fritzwillian College em Cambridge. As canções moram já no seu dia a dia, algumas das que então compõe acabando mais tarde no alinhamento do álbum Five Leaves Left.

Viviam-se dias vibrantes. Nos caminhos da vanguarda musical Stockhausen compunha Hymnen e Ligeti apresentava Lontano. Nos EUA Philip Glass e Steve Reich desenvolviam as bases das suas linguagens respetivamente em composições como 600 Lines e Piano Phase. No plano pop/rock os Beatles tinham lançado Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band e os Rolling Stones apresentavam Their Satanic Majesties Request. Em tempo de expressão maior do psicadelismo os Pink Floyd estreavam-se com Piper At the Gates of Dawn, os Doors com o seu álbum homónimo, os Jefferson editavam White Rabbit, os Love revelavam Forever Changes, os Byrds propunham Younger Than Yesterday, os Turtles cantavam Happy Together. Um (muito) jovem David Bowie editava um primeiro álbum homónimo mais próximo de heranças do teatro e vaudeville que do rock’n’roll. Em Nova Iorque, os Velvet Underground lançavam num primeiro álbum as bases para toda uma nova visão da criação rock. Donovan reinventava-se ao som de Mellow Yellow. Ao mesmo tempo uma nova geração de cultores da folk desenhava novas ideias. E uma nova geração de cantautores dava primeiros passos: Leonard Cohen lançava um primeiro disco, Van Morrison preparava a chegada de Astral Weeks em 1968, Tim Buckley editava um segundo álbum, Scott Walker estreava nova etapa a solo, James Taylor compunha a pensar num primeiro disco, Joni Mitchell fazia o mesmo...

De promissor cantautor universitário a músico profissional o percurso de Nick Drake viveu então uma série de encontros certos, nas horas certas e com as pessoas certas. Foi ele mesmo quem contactou Chris Blackwell. Não recebeu um sim, mas também não saiu da reunião com um não. Antes, um “volta mais tarde”... Por essa altura cantou na primeira parte dos Country Joe and The Fish na Roundhouse, em Londres. Na plateia estava o baixista dos Fairport Convention, que se apresentou a Nick depois da atuação e, poucos dias depois, dava o seu nome e número de telefone ao produtor Joe Boyd (14), que era nome de peso na cena folk de então (e tinha sido o responsável pela gravação do primeiro single dos Pink Floyd poucos meses antes). Impressionando com as canções que Nick lhe mostra aceita trabalhar com ele.

“Uh, hello?... A voz no outro lado da linha era grave e suave, quase envergonhada”. É assim que Joe Boyd lembra o primeiro contacto com o som da voz do músico. Marcaram um encontro. “Apareceu no meu escritório de sobretudo de lã preto sujo com cinza de cigarro. Era alto, belo, inclinando-se de forma apologética. Ou não fazia ideia da sua boa aparência ou viva envergonhado por esse facto” (15), recorda o produtor. Quando lhe explica o que com ele quer fazer Nick acenou que sim e gaguejou, olhando para as suas mãos, descreve Joe Boyd, que recorda ainda a pronuncia aristocrática que reconheceu logo nesse primeiro contacto. “Não conseguia tirar os meus olhos das mãos dele: eram enormes e com manchas de nicotina, os dedos fortes e articulados, com unhas longas e bem desenhadas, mas sujas” (16)

Paul Harris (diretor musical) passou então horas a fio com Nick Drake em volta das suas canções. “Ele [Paul] coçava a sua cabeça como que tentando adivinhar de que planeta este miúdo tinha chegado. Esta era uma das reações típicas dos músicos a Nick: não conseguiam categorizá-lo. Alguns, como Harris, reconheceram a fragilidade do seu génio e tornaram-se seus protetores” (17), relata Joe Boyd.

Em 1968 Nick Drake tinha um contrato discográfico assinado com a Island Records e começava a trabalhar num álbum de estreia. Passou então parte do ano entre Cambridge e Londres, trabalhando as canções. Chamou ao disco Five Leaves Left numa alusão à marca que, nas embalagens de mortalhas Rizzla, indicava que restavam apenas cinco para usar. É um álbum de canções magníficas, a voz frágil de Nick Drake surgindo entre melodias seguras e arranjos que as valorizam.

Mas na altura nem tudo correu depois tão bem quanto o esforço criativo que fez nascer o disco. As expectativas de Joe Boyd, tal como a sua abordagem como produtor tinham sido marcadas pela experiência recente de Leonard Cohen, recorda em White Bycicles. O seu álbum de estreia, lançado em 1967 tinha ultrapassado as 100 mil cópias só na América numa altura em que Cohen havia recusado todas e quaisquer propostas para tocar ao vivo. “Mas quando o álbum de Nick foi lançado no Reino Unido não tínhamos [no país] espaços de rádio como as estações de FM americanas que tocaram o Suzanne tantas vezes. John Peel tocava o álbum de Nick, mas era dos poucos a fazê-lo. A Radio One era focada na pop e na suas miríades de formas, nenhuma delas se aproximando de Nick” (18) lembra Joe Boyd, que acrescenta ainda que, no jornal Melody Maker o disco foi então descrito como “uma mistura bizarra de folk e jazz para cocktails”.

Uma digressão nacional foi organizada pouco depois da edição do álbum mas, à terceira data, Nick telefona ao amigo e seu produtor dizendo-lhe que acha que não consegue dar mais concertos e por isso pede desculpa. Boyd falou então com o promotor de um dos concertos para tentar compreender se algo se passara, ao que este outro contou que as pessoas na plateia falavam muito e que, quando Nick afinava as cordas da guitarra entre as canções, falavam ainda mais e iam beber cervejas. O ruído dos copos a bater e a conversa ouviam-se mesmo mais que a própria música de Nick Drake. E a dada altura, quando o ruído da sala se tornou excessivo, o músico olhou para os seus sapatos por breves instantes, levantou-se e abandonou o palco.

O ambiente era contudo ainda feito de entusiasmo quando chegou a hora de criar um segundo álbum em cujas gravações participaram músicos como John Cale (19) ou Richard Thompson (20), criando em Bryter Layter uma nova coleção de canções de perfil mais ritmado e com mais pontes de afinidade com o jazz. Mas, tal como sucedera com Five Leaves Left, o disco passara longe das atenções da maioria. E é sob o peso do que entendeu como uma derrota, que regressa a casa dos pais, mergulhando num processo de depressão com ocasionais momentos de maior esperança (como aqueles em que regista Pink Moon).

Apesar do interesse e admiração de David Geffen (21), a obra de Nick Drake quase não teve expressão nos Estados Unidos enquanto foi vivo. Na verdade ao mercado americano chegou apenas uma antologia dos seus dois primeiros álbuns com o título Nick Drake. Foi em 1972 e mereceu da Rolling Stone o comentário de “belo e decadente”. A crítica, de Stephen Holden (publicada na edição de 27 de abril da revista e recordada no livro de Patrick Humphries) falava ainda do “triunfo do ecletismo”, que a música “juntava de forma bem sucedida vários elementos da evolução da folk/rock urbana” e que combinava “o melhor da balada jazz pop do início dos anos 60” com “a introspeção contemporânea do folk/rock britânico, evocando um feitiço hipnótico de langor opiáceo”... Mas para nele se apostar nos EUA, era pedida a passagem pela estrada. E o palco, está visto, não era a casa de Nick Drake. (22).

14 – Joe Boyd (n. 1942) Produtor musical e promotor de espectáculos com grande ligação com a cena folk britânica em finais dos anos 60, teve um papel decisivo no lançamento de Nick Drake. O acordo que estabeleceu com a Island Record prevê, por exemplo, que os discos de Nick Drake nunca sejam descatalogados. Boyd produziu também em 1967 o single de estreia dos Pink Floyd.
15 – in White Bycicles, de Joe Boyd (Serpent’s Tail, 2005), pág 191
16 – ibidem, pág 192
17 – ibidem, pág 196
18 – ibidem, pág 197
19 – John Cale (n. 1942) Músico galês colaborou a dada altura com La Monte Young e integrou os Velvet Underground. Tocou no álbum Bryter Later, de Nick Drake.
20 – Richard Thompson (n. 1949) Músico inglês, integrou em tempos os Fairport Convention. Colaborou nos álbuns Five Leaves Left e Bryter Later.
21 – David Geffen (n. 1943) Executivo da indústria do entretenimento, fundou a Asylum Records nos anos 70 e a Geffen Records nos anos 80. É um dos fundadores da Dreamworks.
22 – in Nick Drake – The Biography, de Patrick Humphries (Bloomsbury, 1997), pág 188