sábado, março 17, 2012

Televisão & crise

ROLAND BARTHES
Em televisão, a "crise" deixou de ser um tema, para passar a existir como uma compulsão incontornável à qual nos devemos submeter sem hesitação (e, no limite, sem pensar) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Março), com o título 'A crise de coisa nenhuma'.

1. Há qualquer coisa de comovente no entusiasmo com que algumas notícias televisivas celebram os prémios obtidos por filmes portugueses em festivais de cinema de todos os cantos do planeta. Não discuto, naturalmente, a sinceridade de quem lê as notícias nem o profissionalismo de quem as escreve. Não se trata de favorecer banais processos de intenção. Trata-se, isso sim, de constatar que, há décadas, a instituição televisão, na sua globalidade, promove uma cultura anti-cinematográfica (leia-se: “telenovelesca”), ao mesmo tempo que pratica estes jogos florais de quem exalta a vítima que, simbolicamente, todos os dias vai castigando. A não ser que algum responsável televisivo queira vir a público defender a complexidade temática, a superioridade conceptual e a inteligência narrativa das telenovelas... Tendo em conta o estado das coisas, seria, por certo, uma louvável demonstração de coragem. Ou, na pior das hipóteses, de apoteótica distracção.

2. De acordo com um velho preconceito, não especificamente televisivo, mas fortemente social, a crítica de cinema é o lugar delirante (e irrelevante, claro) das especulações analíticas. O que é que tal preconceito terá a dizer sobre o facto de os mais sistemáticos, mais longos e mais elaborados espaços analíticos da televisão terem como objecto o... futebol?

3. Há uma crise que nos assola que é também uma crise de modelos de comunicação televisiva. O seu assombramento transformou-se num efeito de linguagem que, na área política, ninguém arrisca criticar. Tornou-se mesmo compulsivo lançar a palavra “crise” como uma espécie de dramática prova real de alguma relação com o presente... Seria, talvez, tempo de o espaço televisivo reflectir um pouco sobre tal dinâmica (ou a falta dela). Não para iludir a gravidade dos problemas que assolam o nosso tecido social. Antes para combater a unicidade mediática que se instalou. Na prática, o saldo da maior parte dos debates confunde-se mesmo com a celebração de uma violenta tautologia: “A crise é a crise” (sem esquecermos que a tautologia é, no genial dizer de Roland Barthes, essa “admirável segurança do nada”).