1. Com o folclore televisivo em torno do congresso do PSD, ficámos a saber que o facto de José Sócrates estar a viver em Paris já não é apenas motivo de caricatura mais ou menos boçal. Passámos a um novo patamar da infâmia: viver em Paris pode ser — é-o, em todo o caso, no caso do ex-primeiro-ministro de Portugal — um automático motivo de suspeição, porventura um índice seguro de qualquer coisa de criminoso... Sem esquecer que, na miséria mental portuguesa, estar em Paris e, ainda por cima, estudar filosofia, corresponde à mais exuberante degradação moral.
2. Para a minha geração, Paris foi (continua a ser, hélas!) uma referência simbólica em que se cruzam a nobreza herdada da história plural da humanidade e os restos de utopia que o presente ainda sabe conter. Ver (e ouvir, minha Nossa Senhora!) a cidade de Paris tratada como uma aldeia estúpida, perdida no mapa da ignomínia, é qualquer coisa que ultrapassa a pura ofensa — é também sintoma de uma mediocridade mediática e política que se passeia, impune, pelos lugares do nosso quotidiano.
3. Nada disto tem a ver com a avaliação, seja ela qual for, que qualquer cidadão possa fazer da prática política de José Sócrates. O que está em causa é a contaminação do espaço da comunicação (social???) por jogos florais deste género que, todos os dias, ensinam uma atitude de menosprezo e sarcasmo em relação a tudo e a todos. Que ninguém reaja, formal e oficialmente, a este "anti-socratismo" primário (incluindo o Partido Socialista), eis o que nos relembra que não vale a pena ter esperança de a classe política enfrentar a degradação corrente dos valores humanos. Ou será que os membros dessa classe se julgam exteriores às exigências do humanismo?