Num tempo de crise de memórias cinéfilas, O Artista avança com um simulacro tão sedutor quanto superficial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Fevereiro), com o título 'Um símbolo da nova cinefilia'.
Há qualquer coisa de bizarro na consagração militante de O Artista, sancionada por uma avalancha de prémios que, não tenhamos dúvidas, se vai prolongar nos Oscars (do próximo dia 26). Desde logo, porque a sua condição de filme “mudo”, a preto e branco, contraria as leis de um mercado que, cedendo ao novo-riquismo televisivo, há muito empurrou as memórias do cinema para o caixote das velharias mais ou menos irrelevantes. Depois, porque assistimos, assim, ao triunfo made in USA de um produto de raiz europeia.
Que está, então, a ser celebrado em O Artista? Não quero esconder que, desde que o descobri no Festival de Cannes de 2011 (antes de qualquer prémio), me parece um divertimento tão risonho quanto inócuo: uma espécie de derivação kitsch do cinema mudo, fabricada para o imaginário de audiências que, ao longo de décadas, foram desapossadas do gosto pela memória cinéfila. No limite, O Artista convoca e, de algum modo, cauciona o lugar-comum americano segundo o qual o cinema europeu se reduz sempre a uma derivação “artística” dos modelos de Hollywood (o título, aliás, não poderia ser mais perversamente simbólico, tanto mais que o protagonista é um francês que procura o sucesso nos... EUA).
O Artista não será tanto uma “homenagem” ao cinema primitivo como o seu resgate através das delícias imperfeitas da imitação. Paradoxalmente, estamos perante um objecto típico da era digital: a evocação dos filmes “antigos” deixou de ser feita através da prática cinéfila da citação, que alguns autores da Nova Vaga francesa transformaram numa arte narrativa (Godard, hélas!), para passar a consumar-se pela via do simulacro. Está a nascer uma nova cinefilia em que a paixão da matéria dá lugar aos artifícios da aparência. O cinema do ser desaparece sob a exuberância do parecer.