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David Fincher é um cineasta do concreto, sempre seduzido pela abstracção das formas: Millennium 1 - Os Homens que Odeiam as Mulheres é a uma nova e eloquente ilustração da sua visão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Janeiro), com o título 'Aventura do concreto e do abstrato'.
Afinal de contas, que acontece nos filmes de David Fincher? Digamos que a fama conquistada com o magnífico Seven (1995) terá deixado uma herança equívoca: Fincher seria um manipulador da nossa proverbial inocência, prolongando até ao limite do sustentável o modelo do “mistério-até-ao-fim”.
Face ao vertiginoso Millennium 1 – Os Homens que Odeiam as Mulheres, importa tentar ultrapassar tal caracterização do seu trabalho. Desde logo, pela razão muito básica que está expressa no título do best-seller de Stieg Larsson: este é um objecto de um neo-feminismo, obstinado e radical, em que já não se trata tanto de celebrar uma determinada identidade feminina, como de expor a devastadora crueldade de um mundo organizado a partir de uma violência primordialmente masculina (e há todo um subtexto, também ele radical e perturbante, que remete essa violência para o imaginário nazi).
Além do mais, deparamos com a obsessiva deambulação labiríntica que constitui a mais forte assinatura de Fincher. Tal como na rede de bizarras implicações de Clube de Combate (1999) ou na rede, ela própria, de A Rede Social (2010), o cineasta coloca em cena um desejo de verdade que contém componentes do policial mas que, a pouco e pouco, se vai transfigurando numa demanda de identidade(s) em que todas as certezas, desde a transparência da história às relações sexuais, são pacientemente questionadas.
Daí a estranha beleza de Millennium 1: por um lado, há nele uma urgência face ao concreto do nosso mundo que lhe confere a dimensão de parábola sobre a persistência do Mal e o fim de todos os romantismos; por outro lado, vivemos uma aventura tocada pela mais pura abstracção formal. É tempo de acreditarmos que Howard Hawks tem, finalmente, um herdeiro moderno.