sábado, janeiro 21, 2012

Viver e morrer em televisão

O Grande C, com Laura Linney, é uma magnífica série que lida com o cancro, e a nitidez da morte, sem nunca ceder à demagogia "existencial"  de muitos programas televisivos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Janeiro).

Não sei se o leitor partilha o meu ponto de vista, mas considero que, em alguns programas televisivos, em particular os que convocam as pessoas para falar da sua vida privada, se ultrapassou há muito a fronteira do pudor e do respeito pela humanidade de cada um. Considero mesmo que tais programas promovem uma cultura da mais pura obscenidade, reduzindo a existência individual a uma grosseira montra pública onde o recato e a intimidade não têm qualquer valor.
A vida de cada um? Sim, a vida, mas não só: também a morte. Trata-se a relação pessoal com a morte como se fosse uma parada de números mais ou menos chocantes para exibir, consumir e deitar fora. Daí o tristíssimo estado das coisas: uma banalidade filosófica (?) dita por um qualquer “famoso” que tenha posto a sua própria inteligência em greve ganha uma evidência colossal, mas a simples existência de uma série tão admirável como O Grande C (The Big C), a passar no TV Séries, não faz manchetes em nenhum lado.
Criada por Darlene Hunt, para o canal americano Showtime, O Grande C é, precisamente, uma série sobre a morte. O “C” do título remete para a palavra cancro. A protagonista, uma professora de liceu, admiravelmente interpretada por Laura Linney (também produtora executiva), sofre de melanoma terminal. Entre uma família não muito equilibrada e uma vizinhança nem sempre muito acolhedora, ela decide viver numa espécie de corda bamba emocional em que a partilha ou a ocultação do seu estado implica inevitáveis diferenças na relação com os outros.
Estamos, aqui, bem longe da sinistra piedade que, quase todos os dias, encontramos nas conversas de reality show. Não se trata de reforçar o discurso paternalista que reduz o paciente a uma marioneta emocional, mas de fazer o retrato de um quotidiano em que, afinal, a nitidez da morte é vivida como um factor de relançamento da vida. Apostando numa desconcertante frieza realista, combinada com uma ironia contagiante, a série consegue essa coisa rara e preciosa que consiste em valorizar o carácter irredutível de cada ser humano. Em boa verdade, O Grande C retrata a comédia da vida. Morte incluída.